POESIA ATUAL: A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
E AS RELAÇÕES COM OS POETAS DO PASSADO
Nei Duclós (*)
A poesia atual é onívora, alimenta-se de todas as
influências na diversidade das atividades humanas. É feita de inclusões, desde
as vertentes consideradas superadas, até a arte poética voltada para dentro,
que se relaciona simbolicamente consigo mesma. O poeta contemporâneo é um
antologista vocacionado de influências constantes, pelo acesso irrestrito que
tem tanto da produção passada como da que esta sendo feita agora e colocada à
disposição na rede. Mas a influência que conta é ruptura. O que é amigável não
influi, não acrescenta, apenas confirma. A ruptura, em vez de negar o que
rompe, o anexa num outro patamar.
Cada autor trabalha de maneira única e pessoal essa
confluência de trabalhos desenvolvidos em inúmeros momentos. Destacam-se, como
sempre, os mais bem sucedidos no domínio da linguagem, os que aprendem
equilibrar talento e técnica e exibem fôlego em obras enxutas ou derramadas.
Produzir uma poesia com eficiência seria impregnar a leitura de criações
inesquecíveis, que sirvam de referência ao habitat do espírito, da cultura e da
arte. E que se oponham às imposições das inúmeras linguagens, como a
corporativa, a religiosa, a política, a publicitária etc.
Fui criado numa terra em que a poesia era uma arte
guerreira. Era uma arma branca de guerra. Se duelava em poesia por meio da
trova, que era um evento épico de confrontos que visavam a aniquilação moral do
inimigo. Os embates e os recitais nativistas da poesia quase cantada e
acompanhada de instrumentos musicais como a sanfona punha em evidência os craques
que, no improviso, discorriam sobre a falta de qualidades do adversário, ali
presente. Os instrumentos eram a virilidade e seus desdobramentos, como a
coragem, o desprendimento, o caráter e a contundência verbal. E os temas
versavam sobre assuntos da vida rural e esportes correlatos, como a caça, o
roubo de mulheres e o contrabando.
Naturalmente que a trova ou a poesia nativista assim
exercida por pessoas selecionadas no fragor das lutas da rima e do verso não se
limitou à sua forma original e extrapolou para outros rumos, como a história
gaúcha e a diversidade de suas lides através do tempo. O exemplar mais
brilhante desse ofício singular foi sem dúvida Jayme Caetano Braun, cuja obra,
tomada em seu conjunto, é um único grande épico sobre a formação do Rio Grande
e sua gente. Braun é nosso Homero, nosso rapsodo e a figura mestra de uma arte na
qual se projetavam os mais ousados, atirados, desafiadores poetas, que não eram
assim chamados. Preferia-se payador, trovador e assim por diante.
Também não era visto como poesia, mas luta verbal. Poesia se
refere a poetas, que são figuras urbanas pálidas e tuberculosas e não saudáveis
figuras de espada e cartucheira. Os tímidos admiravam aquelas lutas do verbo
que crepitavam nas tardes e noites de churrascos e duelos. Fui um deles. Não me
considerava apto para defender publicamente o que elaborava nos meus cadernos.
Criado ouvindo os versos de Martin Fierro, de José Hernadez, que eram uma espécie de acervo familiar de sabedorias práticas, estava prestes a mudar completamente de ambiente. Aos poucos, com a mudança de endereço, quando migrei para a capital, Porto
Alegre, separei-me totalmente dessa ideia de poesia, embora mantenha até hoje a
admiração devida. Acho que declamar é uma arte difícil, mais do que a oratória,
mas que sabe ser gloriosa quando manobrada com arte suprema.
No pampa, o condoreirismo da Bahia, do Castro Alves do Navio
Negreiro e Vozes da Africa, eram exemplos máximos da erudição poética
brasileira e tratados com o devido respeito que se reserva aos soberanos. Saber
de cor um desses grandes poemas fazia do temerário declamador uma celebridade
local. Se fossem recitados com as mãos nas costas e expressões significativas
do rosto, que acompanham a riqueza da criação das estrofes, era maior o impacto
em plateia atentas e de respiração suspensa.
Impregnado desse clima épico que cruzava a poesia aprendida
na grade escolar – desde os pioneiros, passando pelos árcades e desaguando nos
parnasianos e simbolistas – eu trabalhava o poema dentro do cânone aprendido,
que só foi implodido em Porto Alegre, quando descobri Fernando Pessoa, Garcia
Lorca, Maiakovski, Oswald de Andrade , os irmãos Campos etc.
Borges gostava de dizer que um autor inventa seus
precursores, o que coloca o tema influência num dos tópicos da impostura.
Apontar seus precursores pode cair no mesmo erro das pesquisas de vidas
passadas, quando descobrimos sempre que encarnamos anteriormente em reis,
príncipes e grandes guerreiros e não num simples varredor. Uma vez perguntei ao
italiano que me cortava o cabelo se ele sonhava em viver no antigo império
romano. Depende do lugar onde eu ocuparia na escala social, disse ele. Como
escravo não gostaria nem um pouco.
Talvez esse risco tenha me empurrado para uma declaração
voluntariosa complicada, que é um pequeno poema do meu livro de estreia
Outubro. Publiquei lá os quatro versos do poema que diz: Falo de coisas que sei
com palavras que me deram. A canção que eu faço, não herdei. Por muito tempo
achei que era pura pretensão minha, mas descubro que foi uma forma de me preservar
dos encostos que costumam atribuir aos poetas que surgem em determinado
momento. Quando lancei no final dos anos
60 os poemas que mais tarde fizeram parte do livro Outubro, expus nas praças de
um país sob a ditadura uma poesia ao mesmo tempo épica e lírica.
Era completamente avessa ao cânone da época, quando se fazia
uma poesia muito engessada e acadêmica, fruto das leituras pesadas da crítica
literária, que no fim acabou devorando a poesia com suas imposições. A poesia
auto-referente, como pesquisa obsessiva da linguagem, mais influências
poderosas como as do concretismo e a de João Cabral de Melo Neto, gerou
epígonos que se dedicavam à secura do verso e execravam o derramamento amoroso
do fazer poético. Na música popular a migração de Vinicius de Moraes para as
letras de samba já tinha feito um estrago importante, mas a poesia escrita, sem
melodia, se mantinha intacta com suas rígidas camisas de força.
Isso desagradava tanto o Mario Quintana que ele dizia ter
medo que aquilo se espalhasse. Nos poemas de Outubro consegui concentrar meu
trabalho no que interessa verdadeiramente, aproveitando a lição de Drummond de “penetrar
surdamente no reino das palavras”. Surdamente, ou seja, sem o diálogo interno.
Com o ouvido atento à explosão das ruas, à sonoridade que era pontual e ao
mesmo tempo vinha de longe, pois nossos grande poetas, como Bilac e Castro Alves,
são mestres do uso das vogais. Uma poesia redonda como o rio e o pampa, enxuta
pelo aprendizado do uso minimalista da palavra e com a contundência que buscava
ser tão forte quanto aquela dos antigos trovadores.
Fernando Pessoa foi um impacto importante. Um professor de
língua portuguesa recitou aquele poema famoso sobre Jesus Cristo descendo à
terra, no curso de Jornalismo da Ufrgs. Fiquei impressionado com a leveza e a
força daquela poesia que eu desconhecia completamente. A limpeza árcade de
Alberto Caieiro e a brutalidade verbal de Álvaro de Campos fizeram o serviço de
demolição de meus engessamentos poéticos. Fiquei aberto para a sonoridade
metálica de farta inspiração popular de Garcia Lorca e a prendi o manejo verbal
com outros mestres, de Ezra Pound e mais tarde os poetas das vanguardas que
conheci aos poucos e de maneira esparsa e caótica. Além da presença, nas leituras, de gigantes como T.S. Elliot.
Mas isso quase se enquadra na impostura anunciada. Prefiro
descobrir outros elementos do clima que formou o hábito do fazer poético. Além
dessa avalanche da linguagem sofrida na infância e adolescência, aponto a
música popular como decisiva na formação de um escritor. Especialmente a bossa
nova, que nos ensinou a escandir cada silaba como se fosse uma pedra preciosa.
Acho que o pronunciar das palavras de João Gilberto, as inovações das letras
dos primeiros versos da dupla Newton Mendonça e Tom Jobim, tiveram tanto ou
mais influência do que a leitura de muitos autores. Escutar João e o que ele
faz com a pronúncia da língua brasileira é uma aula permanente de harmonia,
arranjo e concentração.
Adaptamos a influência para nossos sítios. Nem de longe
mergulhei na obra dos autores que considero importantes para a minha formação
poética. Maiakovski, que era o impulso necessário numa época de ir às ruas,
tinha uma tradição limitada, de E. Carrera Guerra. Não posso avaliar esses
limites pela fidelidade ao original, já que do russo entendo apenas que tem uma
belíssima sonoridade. Mas a qualidade do português usada na tradução do grande
poeta só chegou a um nível mais alto com os irmãos Campos, numa época tardia,
quando não havia mais influência direta, possivelmente porque as ruas
emudeceram e a poesia recolheu-se da praça para de volta à mesa de trabalho,
como acontecia nos primeiros tempos.
Só fui conhecer Lorca mais profundamente quando tive acesso
à sua obra completa e à biografia feita pelo Ian Gibson. E nunca paramos de
conhecer Fernando Pessoa, pois há sempre há algo dele a ler. O fato é que
existe um impacto inicial graças ao conhecimento das mais evidentes
performances da obra e só percorremos um autor verdadeiramente ao longo da
vida. E sempre ficará faltando saber mais. Ao mesmo tempo, vamos recolhendo o
que deixamos de lado, tomando contato com a vasta diversidade poética do mundo.
Hoje, com as facilidades de acesso aos arquivos digitais, podemos redescobrir
antigas admirações ou inaugurar novos fronts de leitura, já que a poesia
continua proliferando, num desdobramento onívoro que me levou a considerar essa
arte como um contraponto às linguagens impostas.
A poesia é a linguagem em busca da sua identidade. Para
cumprir seu destino, deixou de lado o amplo espectro dos temas e concentrou-se
na sua própria ciência: modernidade pelo avesso, já que o único exercício é
recuperar a magia perdida ou dispersa na selva minada pelo jornalismo, a
publicidade, a mídia eletrônica, a diplomacia, a advocacia, o cinema ou a
música. Não é buscar a fórmula exata, mas a palavra-chave, reinstauradora do
verbo. Pois no caos — que podemos batizar de discurso, linguagem em ruínas —
fazer poesia é inventar a carne.
É um enfoque diferente da arte de protesto. Nesta, ainda se
cai na armadilha de manter a mesma linguagem do inimigo. A poesia como
linguagem oposta, alternativa, encarna uma forma diferente de dizer, avessa à
tirania. No miolo da criação, onde tudo pode.
Há sempre uma relação dialética com a influência. Ela não se
torna impositiva, mas coadjuvante, uma interlocução com a nossa obra, que tem
prioridade. Cada autor tem uma forma de se relacionar com suas predileções e
trabalhá-la de maneira própria, original. Senão não seria influência, mas
clonagem. O perigo de transformar-se em epígono vem muitas vezes da percepção
que tenta enquadrar uma obra, colocando-a a reboque de algo anterior. Livrar-se
disso é importante para quem precisa chamar a atenção para as vertentes que
lhes são caras, para o rio que se forma a partir delas e a maneira pessoal com
que deságua na vivência coletiva da poesia.
Resumindo esta fala: Criado num ambiente de fronteira
dominado pela poesia de desafio, aprendi também a admirar os poetas da grade
escolar, da leitura obrigatória, que nos confinava ao cânone do romantismo,
arcadismo, simbolismo, parnasianismo, nunca chegando ao modernismo, onde só fui
tomar conhecimento quando migrei da fronteira para Porto Alegre. Quando lancei
no final dos anos 60 os poemas que mais tarde fizeram parte do livro Outubro,
expus nas praças de um país sob a ditadura uma poesia ao mesmo tempo épica e
lírica e que já sofria a influência dos grandes autores que desengessaram o
verso e o implodiram da tradição.
Os poemas de Outubro eram completamente avessos ao cânone da
época, quando se fazia uma poesia muito engessada e acadêmica, fruto das
leituras pesadas da crítica literária, que no fim acabaram devorando as margens
da poesia, limitando-a a uma nova tradição. A poesia autoreferente, como
pesquisa obsessiva da linguagem, gerou epígonos que se dedicavam à secura do
verso e execravam o derramamento do fazer poético. Mas, como me situei no
espírito da inclusão, mesmo em oposição a esse poder, foi possível aprender a prestar
atenção no ofício e fazê-lo agir com mais contundência.
A partir daí aprendi que toda influência é uma interação
dialética permanente e o convívio com os contemporâneos faz parte desse
processo de aprendizado. Tenho resenhado vários poetas, tanto na época em que
publicava na grande imprensa, quanto agora, nas redes sociais. Gosto da
diversidade da poesia contemporânea, dos exercício com a palavra que vão desde a
proximidade com o modernismo de primeira instância, quanto o minimalismo que
faz da síntese na poesia brasileira quase que uma arte oriental. Numa época de
enxugamento da linguagem, em que as mensagens se reduzem a poucos caracteres,
essa poesia tem encontrado o espaço ideal.
RETORNO - (*) Este foi o texto preparado para apresentar no debate
do dia 30 de agosto no 4º Encontro Estadual de Escritores Gaúchos da 15ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo . O evento aconteceu no Auditório do Centro de Educação em
Tecnologia da Universidade de Passo Fundo (CET/UPF). A discussão foi mediada pelo professor Dr. Luís
Augusto Fischer e contou com a presença, além de mim, dos poetas José Eduardo Escobar
Nogueira e Celso Gutfreind. (Na foto acima, do Diário da Manhã, de Passo Fundo, da esquerda para a direita: eu, Celso, Escobar e Fischer). Fiz e refiz esta
palestra inúmeras vezes. Levei o texto acima, mas usei pouco, pois o
dinamismo da conversa me levou para uma exposição mais objetiva e
sucinta. Coloco aqui como subsídio, um documento do que preparei para o debate, que naturalmente extrapola os limites do evento datado.
No encontro, coloquei a poesia contemporânea como um fenômeno de massa, fundamental
para que surjam grande criadores e que ajudam a construir uma linguagem
poderosa e insurgente para peitar as linguagens impositivas midiáticas,
fundamentalistas, políticas, religiosas, tirânicas, publicitárias etc.
Coloquei minha preferência atual em celebrar poesias abandonadas do
passado como o romantismo e o arcadismo. A de enfocar poemas de amor
depois de muitos anos dedicado ao lirismo épico e à amizade.
Ao mesmo
tempo, elenquei minhas influências, desde a trova campeira, passando
pelos grande poetas brasileiros e o deslumbramento provocado pela
leitura de Pessoa, Lorca, Cabral, Maiakovski, Elliot e Pound, entre
outros. E destaquei a importância da música na poesia, especialmente a
bossa nova e a articulação minimalista da palavra feita por João
Gilberto. Aproveitei, como costumo fazer nos
eventos, para ler um poema de cada livro impresso meu. E a anunciar meu
próximo e-book, só de ensaios literários, intitulado As Ruínas do
Discurso.
José Eduardo Escobar Nogueira e Celso Gutfreind expuseram detalhes de sua formação poética, encantando a plateia com histórias incríveis de infância e mocidade e nos trazendo a fonte da riqueza de suas obras.
José Eduardo Escobar Nogueira e Celso Gutfreind expuseram detalhes de sua formação poética, encantando a plateia com histórias incríveis de infância e mocidade e nos trazendo a fonte da riqueza de suas obras.