1 de setembro de 2013

INSURGÊNCIA DA POESIA DE MASSA




POESIA ATUAL: A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
E AS RELAÇÕES COM OS POETAS DO PASSADO

Nei Duclós (*)

A poesia atual é onívora, alimenta-se de todas as influências na diversidade das atividades humanas. É feita de inclusões, desde as vertentes consideradas superadas, até a arte poética voltada para dentro, que se relaciona simbolicamente consigo mesma. O poeta contemporâneo é um antologista vocacionado de influências constantes, pelo acesso irrestrito que tem tanto da produção passada como da que esta sendo feita agora e colocada à disposição na rede. Mas a influência que conta é ruptura. O que é amigável não influi, não acrescenta, apenas confirma. A ruptura, em vez de negar o que rompe, o anexa num outro patamar.

Cada autor trabalha de maneira única e pessoal essa confluência de trabalhos desenvolvidos em inúmeros momentos. Destacam-se, como sempre, os mais bem sucedidos no domínio da linguagem, os que aprendem equilibrar talento e técnica e exibem fôlego em obras enxutas ou derramadas. Produzir uma poesia com eficiência seria impregnar a leitura de criações inesquecíveis, que sirvam de referência ao habitat do espírito, da cultura e da arte. E que se oponham às imposições das inúmeras linguagens, como a corporativa, a religiosa, a política, a publicitária etc.

Fui criado numa terra em que a poesia era uma arte guerreira. Era uma arma branca de guerra. Se duelava em poesia por meio da trova, que era um evento épico de confrontos que visavam a aniquilação moral do inimigo. Os embates e os recitais nativistas da poesia quase cantada e acompanhada de instrumentos musicais como a sanfona punha em evidência os craques que, no improviso, discorriam sobre a falta de qualidades do adversário, ali presente. Os instrumentos eram a virilidade e seus desdobramentos, como a coragem, o desprendimento, o caráter e a contundência verbal. E os temas versavam sobre assuntos da vida rural e esportes correlatos, como a caça, o roubo de mulheres e o contrabando.

Naturalmente que a trova ou a poesia nativista assim exercida por pessoas selecionadas no fragor das lutas da rima e do verso não se limitou à sua forma original e extrapolou para outros rumos, como a história gaúcha e a diversidade de suas lides através do tempo. O exemplar mais brilhante desse ofício singular foi sem dúvida Jayme Caetano Braun, cuja obra, tomada em seu conjunto, é um único grande épico sobre a formação do Rio Grande e sua gente. Braun é nosso Homero, nosso rapsodo e a figura mestra de uma arte na qual se projetavam os mais ousados, atirados, desafiadores poetas, que não eram assim chamados. Preferia-se payador, trovador e assim por diante.

Também não era visto como poesia, mas luta verbal. Poesia se refere a poetas, que são figuras urbanas pálidas e tuberculosas e não saudáveis figuras de espada e cartucheira. Os tímidos admiravam aquelas lutas do verbo que crepitavam nas tardes e noites de churrascos e duelos. Fui um deles. Não me considerava apto para defender publicamente o que elaborava nos meus cadernos. Criado ouvindo os versos de Martin Fierro, de José Hernadez, que eram uma espécie de acervo familiar de sabedorias práticas, estava prestes a mudar completamente de ambiente. Aos poucos, com a mudança de endereço, quando migrei para a capital, Porto Alegre, separei-me totalmente dessa ideia de poesia, embora mantenha até hoje a admiração devida. Acho que declamar é uma arte difícil, mais do que a oratória, mas que sabe ser gloriosa quando manobrada com arte suprema.

No pampa, o condoreirismo da Bahia, do Castro Alves do Navio Negreiro e Vozes da Africa, eram exemplos máximos da erudição poética brasileira e tratados com o devido respeito que se reserva aos soberanos. Saber de cor um desses grandes poemas fazia do temerário declamador uma celebridade local. Se fossem recitados com as mãos nas costas e expressões significativas do rosto, que acompanham a riqueza da criação das estrofes, era maior o impacto em plateia atentas e de respiração suspensa.

Impregnado desse clima épico que cruzava a poesia aprendida na grade escolar – desde os pioneiros, passando pelos árcades e desaguando nos parnasianos e simbolistas – eu trabalhava o poema dentro do cânone aprendido, que só foi implodido em Porto Alegre, quando descobri Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Maiakovski, Oswald de Andrade , os irmãos Campos etc.

Borges gostava de dizer que um autor inventa seus precursores, o que coloca o tema influência num dos tópicos da impostura. Apontar seus precursores pode cair no mesmo erro das pesquisas de vidas passadas, quando descobrimos sempre que encarnamos anteriormente em reis, príncipes e grandes guerreiros e não num simples varredor. Uma vez perguntei ao italiano que me cortava o cabelo se ele sonhava em viver no antigo império romano. Depende do lugar onde eu ocuparia na escala social, disse ele. Como escravo não gostaria nem um pouco.

Talvez esse risco tenha me empurrado para uma declaração voluntariosa complicada, que é um pequeno poema do meu livro de estreia Outubro. Publiquei lá os quatro versos do poema que diz: Falo de coisas que sei com palavras que me deram. A canção que eu faço, não herdei. Por muito tempo achei que era pura pretensão minha, mas descubro que foi uma forma de me preservar dos encostos que costumam atribuir aos poetas que surgem em determinado momento.  Quando lancei no final dos anos 60 os poemas que mais tarde fizeram parte do livro Outubro, expus nas praças de um país sob a ditadura uma poesia ao mesmo tempo épica e lírica.

Era completamente avessa ao cânone da época, quando se fazia uma poesia muito engessada e acadêmica, fruto das leituras pesadas da crítica literária, que no fim acabou devorando a poesia com suas imposições. A poesia auto-referente, como pesquisa obsessiva da linguagem, mais influências poderosas como as do concretismo e a de João Cabral de Melo Neto, gerou epígonos que se dedicavam à secura do verso e execravam o derramamento amoroso do fazer poético. Na música popular a migração de Vinicius de Moraes para as letras de samba já tinha feito um estrago importante, mas a poesia escrita, sem melodia, se mantinha intacta com suas rígidas camisas de força.

Isso desagradava tanto o Mario Quintana que ele dizia ter medo que aquilo se espalhasse. Nos poemas de Outubro consegui concentrar meu trabalho no que interessa verdadeiramente, aproveitando a lição de Drummond de “penetrar surdamente no reino das palavras”. Surdamente, ou seja, sem o diálogo interno. Com o ouvido atento à explosão das ruas, à sonoridade que era pontual e ao mesmo tempo vinha de longe, pois nossos grande poetas, como Bilac e Castro Alves, são mestres do uso das vogais. Uma poesia redonda como o rio e o pampa, enxuta pelo aprendizado do uso minimalista da palavra e com a contundência que buscava ser tão forte quanto aquela dos antigos trovadores.

Fernando Pessoa foi um impacto importante. Um professor de língua portuguesa recitou aquele poema famoso sobre Jesus Cristo descendo à terra, no curso de Jornalismo da Ufrgs. Fiquei impressionado com a leveza e a força daquela poesia que eu desconhecia completamente. A limpeza árcade de Alberto Caieiro e a brutalidade verbal de Álvaro de Campos fizeram o serviço de demolição de meus engessamentos poéticos. Fiquei aberto para a sonoridade metálica de farta inspiração popular de Garcia Lorca e a prendi o manejo verbal com outros mestres, de Ezra Pound e mais tarde os poetas das vanguardas que conheci aos poucos e de maneira esparsa e caótica. Além da presença, nas leituras, de gigantes como T.S. Elliot.

Mas isso quase se enquadra na impostura anunciada. Prefiro descobrir outros elementos do clima que formou o hábito do fazer poético. Além dessa avalanche da linguagem sofrida na infância e adolescência, aponto a música popular como decisiva na formação de um escritor. Especialmente a bossa nova, que nos ensinou a escandir cada silaba como se fosse uma pedra preciosa. Acho que o pronunciar das palavras de João Gilberto, as inovações das letras dos primeiros versos da dupla Newton Mendonça e Tom Jobim, tiveram tanto ou mais influência do que a leitura de muitos autores. Escutar João e o que ele faz com a pronúncia da língua brasileira é uma aula permanente de harmonia, arranjo e concentração.

Adaptamos a influência para nossos sítios. Nem de longe mergulhei na obra dos autores que considero importantes para a minha formação poética. Maiakovski, que era o impulso necessário numa época de ir às ruas, tinha uma tradição limitada, de E. Carrera Guerra. Não posso avaliar esses limites pela fidelidade ao original, já que do russo entendo apenas que tem uma belíssima sonoridade. Mas a qualidade do português usada na tradução do grande poeta só chegou a um nível mais alto com os irmãos Campos, numa época tardia, quando não havia mais influência direta, possivelmente porque as ruas emudeceram e a poesia recolheu-se da praça para de volta à mesa de trabalho, como acontecia nos primeiros tempos.

Só fui conhecer Lorca mais profundamente quando tive acesso à sua obra completa e à biografia feita pelo Ian Gibson. E nunca paramos de conhecer Fernando Pessoa, pois há sempre há algo dele a ler. O fato é que existe um impacto inicial graças ao conhecimento das mais evidentes performances da obra e só percorremos um autor verdadeiramente ao longo da vida. E sempre ficará faltando saber mais. Ao mesmo tempo, vamos recolhendo o que deixamos de lado, tomando contato com a vasta diversidade poética do mundo. Hoje, com as facilidades de acesso aos arquivos digitais, podemos redescobrir antigas admirações ou inaugurar novos fronts de leitura, já que a poesia continua proliferando, num desdobramento onívoro que me levou a considerar essa arte como um contraponto às linguagens impostas.

A poesia é a linguagem em busca da sua identidade. Para cumprir seu destino, deixou de lado o amplo espectro dos temas e concentrou-se na sua própria ciência: modernidade pelo avesso, já que o único exercício é recuperar a magia perdida ou dispersa na selva minada pelo jornalismo, a publicidade, a mídia eletrônica, a diplomacia, a advocacia, o cinema ou a música. Não é buscar a fórmula exata, mas a palavra-chave, reinstauradora do verbo. Pois no caos — que podemos batizar de discurso, linguagem em ruínas — fazer poesia é inventar a carne.

É um enfoque diferente da arte de protesto. Nesta, ainda se cai na armadilha de manter a mesma linguagem do inimigo. A poesia como linguagem oposta, alternativa, encarna uma forma diferente de dizer, avessa à tirania. No miolo da criação, onde tudo pode.

Há sempre uma relação dialética com a influência. Ela não se torna impositiva, mas coadjuvante, uma interlocução com a nossa obra, que tem prioridade. Cada autor tem uma forma de se relacionar com suas predileções e trabalhá-la de maneira própria, original. Senão não seria influência, mas clonagem. O perigo de transformar-se em epígono vem muitas vezes da percepção que tenta enquadrar uma obra, colocando-a a reboque de algo anterior. Livrar-se disso é importante para quem precisa chamar a atenção para as vertentes que lhes são caras, para o rio que se forma a partir delas e a maneira pessoal com que deságua na vivência coletiva da poesia. 

Resumindo esta fala: Criado num ambiente de fronteira dominado pela poesia de desafio, aprendi também a admirar os poetas da grade escolar, da leitura obrigatória, que nos confinava ao cânone do romantismo, arcadismo, simbolismo, parnasianismo, nunca chegando ao modernismo, onde só fui tomar conhecimento quando migrei da fronteira para Porto Alegre. Quando lancei no final dos anos 60 os poemas que mais tarde fizeram parte do livro Outubro, expus nas praças de um país sob a ditadura uma poesia ao mesmo tempo épica e lírica e que já sofria a influência dos grandes autores que desengessaram o verso e o implodiram da tradição.

Os poemas de Outubro eram completamente avessos ao cânone da época, quando se fazia uma poesia muito engessada e acadêmica, fruto das leituras pesadas da crítica literária, que no fim acabaram devorando as margens da poesia, limitando-a a uma nova tradição. A poesia autoreferente, como pesquisa obsessiva da linguagem, gerou epígonos que se dedicavam à secura do verso e execravam o derramamento do fazer poético. Mas, como me situei no espírito da inclusão, mesmo em oposição a esse poder, foi possível aprender a prestar atenção no ofício e fazê-lo agir com mais contundência.

A partir daí aprendi que toda influência é uma interação dialética permanente e o convívio com os contemporâneos faz parte desse processo de aprendizado. Tenho resenhado vários poetas, tanto na época em que publicava na grande imprensa, quanto agora, nas redes sociais. Gosto da diversidade da poesia contemporânea, dos exercício com a palavra que vão desde a proximidade com o modernismo de primeira instância, quanto o minimalismo que faz da síntese na poesia brasileira quase que uma arte oriental. Numa época de enxugamento da linguagem, em que as mensagens se reduzem a poucos caracteres, essa poesia tem encontrado o espaço ideal.  



 RETORNO - (*) Este foi o texto preparado para apresentar no debate do dia 30 de agosto no 4º Encontro Estadual de Escritores Gaúchos da 15ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo . O evento aconteceu no Auditório do Centro de Educação em Tecnologia da Universidade de Passo Fundo (CET/UPF). A discussão foi mediada pelo professor Dr. Luís Augusto Fischer e contou com a presença, além de mim, dos poetas José Eduardo Escobar Nogueira e Celso Gutfreind. (Na foto acima, do Diário da Manhã, de Passo Fundo, da esquerda para a direita: eu, Celso, Escobar e Fischer). Fiz e refiz esta palestra inúmeras vezes. Levei o texto acima, mas usei pouco, pois o dinamismo da conversa me levou para uma exposição mais objetiva e sucinta. Coloco aqui como subsídio, um documento do que preparei para o debate, que naturalmente extrapola os limites do evento datado.

No encontro, coloquei a poesia contemporânea como um fenômeno de massa, fundamental para que surjam grande criadores e que ajudam a construir uma linguagem poderosa e insurgente para peitar as linguagens impositivas midiáticas, fundamentalistas, políticas, religiosas, tirânicas, publicitárias etc. Coloquei minha preferência atual em celebrar poesias abandonadas do passado como o romantismo e o arcadismo. A de enfocar poemas de amor depois de muitos anos dedicado ao lirismo épico e à amizade. 

Ao mesmo tempo, elenquei minhas influências, desde a trova campeira, passando pelos grande poetas brasileiros e o deslumbramento provocado pela leitura de Pessoa, Lorca, Cabral, Maiakovski, Elliot e Pound, entre outros. E destaquei a importância da música na poesia, especialmente a bossa nova e a articulação minimalista da palavra feita por João Gilberto. Aproveitei, como costumo fazer nos eventos, para ler um poema de cada livro impresso meu. E a anunciar meu próximo e-book, só de ensaios literários, intitulado As Ruínas do Discurso.

José Eduardo Escobar Nogueira e Celso Gutfreind expuseram detalhes de sua formação poética, encantando a plateia com histórias incríveis de infância e mocidade e nos trazendo a fonte da riqueza de suas obras.