3 de março de 2013

CADEIA NO CINEMA: GRACILIANO MANIPULADO



Nei Duclós

1984, ano do lançamento do filme Memórias do Cárcere, foi pautado pela movimentação pró-eleições presidenciais. Leonel Brizola, que encarnava a herança getulista, era o alvo principal da ditadura que queria se consolidar como democracia. Era preciso intensificar a vilanização de Vargas, mentindo sobre sua obra política, o Brasil soberano. O filme, produzido por Luiz Carlos Barreto e dirigido por Nelson Pereira dos Santos,e  baseado no livro de mesmo nome de Graciliano Ramos, fez parte desse trabalho de desmoralização do trabalhismo histórico.

Foi fácil. Bastou mostrar no início do filme o paredismo integralista sugerido como campanha política do governo Vargas, o que é mentira, pois em 1938 os integralistas tentaram derrubar o presidente cercando e tiroteando o Palácio do Catete. Ao longo da narrativa, foram colocados cacos que não constam no livro, como a versão de que o acordo de Getúlio com os Estados Unidos era traição à soberania do país, o que era exatamente o contrário,pois Getulio renegociou a divida externa conseguindo zerá-la de fato ao final da II Guerra, em 1945. Outro truque foi confundir o governo federal com as Forças Armadas, anacronismo que se referia ao golpe de 1964, quando a história era outra.

Por que Graciliano foi preso? Porque foi vitima da politicagem regional de Alagoas, onde exercia o cargo de Diretor da Instrução Pública e fez vários inimigos. Como era simpatizante da Aliança Nacional Libertadora e ferrenho crítico do sistema capitalista, virou alvo fácil dos ressentidos que o encarceraram, com destaque para o tenentinho que se vingou de uma recusa quando o escritor estava empregado como funcionário público.  Levado de roldão pela ressaca da quartelada de 1935, Graciliano caiu na vasta rede de retaliações comandadas pelas Forças Armadas e pelos grupelhos políticos regionais oportunistas.

A chamada Intentona de 1935 foi fruto de longa pregação comunista nos quartéis, que a partir de 1930 ganhou intensidade, como pude verificar pessoalmente nos arquivos do Deops paulista quando fazia a graduação em História da USP. O golpe estava sendo gestado por revolucionários profissionais remunerados por Moscou, como provou William Waack no livro Camaradas. Mas foi desencadeado na tropelia, por um movimento por melhores soldos da Força Pública de Natal, que colocou tropa na rua e os comunistas resolveram criar uma republiqueta nordestina. Pego com as calças na mão, o líder do movimento, Luis Carlos Prestes, teve que assumir o problema e o resultado foi um desastre.

O tenente Agildo Barata tomou o Terceiro Regimento de Infantaria na Praia Vermelha e o general Eurico Gaspar  Dutra acabou com a rebelião canhoneando o quartel. O resultado foi uma ferida profunda nas Forças Armadas, que na época procurava a unidade via Gois Monteiro, o líder militar de 1930. Comunistas, simpatizantes, progressistas, aliancistas e demais personalidades foram encarcerados de maneira brutal em quartéis e muitos lá morreram na tortura e na inanição, misturados a presos condenados por crimes comuns. Graciliano descreve os horrores dessa tragédia no seu livro magistral.

Depois de sair da prisão, Graciliano foi trabalhar no Ministério de Educação e Cultura e publicou todos os livros que quis, sem censura. Na Wikipédia, o verbete sobre o filme diz que a prisão do escritor aconteceu no Estado Novo, o que é mentira. Em 1936 não havia Estado Novo, mas sim governo constituinte, eleito em 1934. Contra o governo constituinte foi dado o golpe de 1935. Os fascistas se aproveitaram e queriam tomar o poder central, mas Getulio, num contragolpe, aliou-se aos militares nacionalistas e impediu o golpe de inspiração nazista, criando o Estado Novo.

Regime de exceção no período da grande guerra, o Estado Novo consolidou as leis trabalhistas, implantou a siderurgia (numa bem articulada negociação no xadrez político internacional), mandou tropas para a guerra europeia lutando a favor dos aliados, abriu o espaço aéreo do nordeste para a aviação anti-Eixo e por isso o Brasil era tido em alta consideração por Roosevelt. No final da guerra, depois que Getulio foi receber os pracinhas vitoriosos no porto do Rio de Janeiro, o governo federal preparava as eleições criando dois partidos, o PSD, de centro, e o PTB, trabalhista.

Mas um golpe militar, em outubro de 1945, acabou com o governo. As eleições foram realizadas, com a vitória do candidato indicado por Getúlio, o general Dutra, que acabou se aliando à UDN e à política americana pós-Roosevelt, de sucateamento do Brasil.

No livro Os Saltimbancos da Porciúncula, anotações do jornalista e escritor Antonio Carlos Villaça (1928-2005) sobre personalidades do mundo literário, e destacado num artigo pelo poeta Sidnei Schneider, surge alguma luz sobre fatos que envolvem o escritor Graciliano Ramos e o presidente Getúlio Vargas.  “Graciliano estava preso, sem processo. Aquilo era um absurdo. Pois, certa manhã, José Lins do Rego, seu grande amigo, foi ao Palácio da Guanabara para conversar com Herman Lima, oficial-de-gabinete de Getúlio. José Lins ia pedir a Herman Lima que pedisse a Getúlio a libertação de Graciliano. O cearense prometeu que sim, que ia pedir a Getúlio. Assim fez. Quando sentiu que o presidente estava de bom humor, fez o pedido.  “Não mandei prender Graciliano, não mando soltar Graciliano”, disse Getulio. “Mas telefone em seu nome ao general Pinto (Francisco José Pinto, chefe da Casa Militar) e lhe peça para telefonar ao Filinto, perguntando por que o Graciliano está preso. Assim fez Herman Lima. Filinto mandou soltar Graciliano. Este saiu da cadeia e foi hospedar-se em casa do seu amigo Lins do Rego, na rua Alfredo Chaves, em Botafogo. “

Em 1953, Graciliano terminou seu relato da cadeia, mas não fez o capítulo final, da sua soltura. O filme é fiel ao livro, menos no desfecho. Graciliano não ganha a liberdade depois de sair da Ilha Grande, mas só depois, já que voltou ao cárcere no Rio e lá ficou mais uma temporada.Mas o filme gostou desse final e deu por encerrada a história.

Carlos Vereza está bem, faz um Graciliano muito doce com alguns surtos de rispidez, o que talvez não esteja muito sintonizado com o personagem real, que era ríspido a maior parte do tempo. Mas é um bom Graciliano, que nos ganha na simpatia, lucidez e coragem. É um registro da história do país e da era Vargas. O presidente Getulio lidava com forças reacionárias poderosas. Não foi inocente, mas omisso e muitas vezes protagonista de crueldades. Imperdoável sob todos os aspectos. Mas é preciso conhecer os fatos em sua inteireza sob pena de usarmos a História para atender a interesses políticos do presente.