Nei Duclós
Vi três obras primas
recentemente: A General, de Buster Keaton (1926), Limelight, de Charles Chaplin
(1952) e Rio Grande, de John Ford (1950). No século 20, a Sétima Arte estava
sob o comando dos gênios. São filmes hiper analisados e prefiro abordá-los numa
visão pessoal, sem pagar tributo ao cânone da crítica.
NÃO SOFRERÁS MAIS, KATHLEEN
Vi Rio Grande como uma aula sobre toques de clarim do
exército americano, um conjunto de canções com temas ambientados na cultura da
caserna, uma celebração da diferença de gêneros ao contrapor a magnífica
Maureen O´Hara a um regimento inteiro capitaneado pelo marido John Wayne e à
brutalidade dos guerreiros dentro e fora do forte. É também um conflito entre a
conduta regida pelas normas e o livre arbítrio como território da camaradagem,
do bom senso e do amor.
John Ford, apesar da fama de mau, com suas cenas de
massacres de malvados apaches invadindo a boa vontade dos pioneiros, é um
mestre da lentidão narrativa, a que mergulha, se aprofunda e busca o toque
íntimo de personagens endurecidos, que se deixam levar por alguns instantes
pela possibilidade do sentimento. O humor bruto e hilário do sargentão
incendiário, a eximia capacidade dos jovens cavaleiros, o desprendimento da
coragem em todos os momentos, o sofrimento pela família e pela pertença a uma
pátria são os sinais dessa civilização que medra à sombra da guerra e da
necessidade de defender o território para a sobrevivência da espécie.
Teremos sempre grandes soldados, mas não os melhores, diz a
canção sobre os heróis irlandeses mortos, cantada em Rio Grande. Vou te levar
para um lugar onde não sofrerás, Kathleen, diz outra canção sussurrada por um
conjunto garboso de uniformes para uma esplendorosa senhora Yorke, que veio
buscar o filho frustrado e abandonado pelo pai. Ela treme de paixão ao lado do
marido do qual se separara depois que ele deu a ordem para queimar as
plantações da família por contingência da guerra. Não escolhi essa música, diz
ele, ao que ela replica: lamento, gostaria que tivesse feito isso.
No fim, toda a rigidez imposta pelos limites da vida militar
vão por água abaixo quando se sente necessidade de cruzar a fronteira para
pegar os assaltantes que infernizavam as famílias . A transgressão consentida
da guerra surge como solução para o que o manual e a diplomacia não conseguem
resolver. O resultado é a quebra na rigidez do pai que rejeitara o filho e a
volta do casal que tinha experimentado a longa ruptura em função dessa
defasagem entre família e nação, entre amor e dever, entre honra e
sobrevivência. No filme tudo se resolve, mas sabemos que na vida o conflito é
mortal e nem sempre há sobreviventes.
A COMÉDIA ASSISTE AO DRAMA
Limelight é a narrativa de um casal improvável, o velho
palhaço (Calvero, interpretado por Chaplin) e a jovem e estonteante bailarina (interpretada
por uma perfeita Claire Bloom). Há um vínculo de gratidão dela em relação ao
seu salvador e que é confundido com amor. A renúncia da vida em comum, por
parte do veterano, permite que a carreira da talentosa dançarina deslanche e
encontre seu verdadeiro par. Mas não tão depressa: o sacrifício do personagem
que tem um ataque cardíaco quando enfim é homenageado na fase terminal da sua
carreira é ao mesmo tempo a celebração da solidão que se transmuta em arte
pura. A situação é representada pelo
palhaço moribundo nos bastidores admirando o rodopio clássico da mulher que o
ama e que assim se despede.
A impossibilidade da consumação desse relacionamento, em que
uma arte (a da comédia) morre para dar lugar definitivo ao drama, é a grande
tragédia do filme. O mundo perde a capacidade de rir e abraça definitivamente a
de chorar. Que chora de forma poética e com noção da morte, sem a ilusão do
eterno presente. Somos criaturas datadas e podemos transcender por meio da arte
que chega à excelência. O empresário sempre gargalhando, a plateia organizada
em claque, os indiferentes cidadãos que dão as costas para os ambulantes não
estão á altura do que Chaplin quer atingir. Seu objetivo é o mais alto ponto do
humano, sua decadência e sua glória.
O filme que chega ao desfecho nesse embate entre a dor e a
superação é um momento decisivo do cinema, quando podemos encará-la como arte
maior, que chega ao nível das grandes sinfonias ou dos romances fundamentais. É
também poesia, lírica e épica, e teatro da melhor extração. Esse é o Chaplin
que homenageia o personagem que o consagrou, o vagabundo que fez ir e chorar o
mundo inteiro, neste filme que merece ser estudado em classe e por isso tem
todas as qualidade e a grandeza de um clássico.
RITMO A SERVIÇO DE UMA CAUSA
Buster Keaton aparece como o atrapalhado pianista numa cena antológica
de Limelight, numa aparição mais do que merecida, pois o jovem Keaton de A
General é um dos modelos, a inspiração e a semente do vagabundo de Chaplin.
Keaton é um artista de circo, um atleta, um gênio do timing, um cineasta
impressionante e um ator de primeiríssima grandeza. O pobre cidadão marginalizado
que acaba usando uma locomotiva para salvar os confederados é o improviso da
coragem numa situação limite, em que o ritmo consegue achar uma saída: o
andamento da montagem trabalha a favor de uma organização universal das
capacidades individuais a serviço de uma causa. A General consegue dizer tanto
com tão pouco.
A exímia performance
de Keaton neste que é considerado um dos cem filmes fundamentais da historia do
cinema alcança a permanência de grande
obra de arte. Rever esses três filmes, entre tantos outros, é não esquecer
nossas origens culturais: viemos das manifestações dos gênios e é para lá que
devermos seguir. São obras tão solenes e importantes que deveriam ser
assistidos de pé, como nas cerimônias que coroam o êxito dos heróis.