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29 de setembro de 2012

CHAPLIN, FORD E KEATON EM TRÊS OBRAS PRIMAS



Nei Duclós
 

Vi  três obras primas recentemente: A General, de Buster Keaton (1926), Limelight, de Charles Chaplin (1952) e Rio Grande, de John Ford (1950). No século 20, a Sétima Arte estava sob o comando dos gênios. São filmes hiper analisados e prefiro abordá-los numa visão pessoal, sem pagar tributo ao cânone da crítica.


NÃO SOFRERÁS MAIS, KATHLEEN

Vi Rio Grande como uma aula sobre toques de clarim do exército americano, um conjunto de canções com temas ambientados na cultura da caserna, uma celebração da diferença de gêneros ao contrapor a magnífica Maureen O´Hara a um regimento inteiro capitaneado pelo marido John Wayne e à brutalidade dos guerreiros dentro e fora do forte. É também um conflito entre a conduta regida pelas normas e o livre arbítrio como território da camaradagem, do bom senso e do amor.

John Ford, apesar da fama de mau, com suas cenas de massacres de malvados apaches invadindo a boa vontade dos pioneiros, é um mestre da lentidão narrativa, a que mergulha, se aprofunda e busca o toque íntimo de personagens endurecidos, que se deixam levar por alguns instantes pela possibilidade do sentimento. O humor bruto e hilário do sargentão incendiário, a eximia capacidade dos jovens cavaleiros, o desprendimento da coragem em todos os momentos, o sofrimento pela família e pela pertença a uma pátria são os sinais dessa civilização que medra à sombra da guerra e da necessidade de defender o território para a sobrevivência da espécie.

Teremos sempre grandes soldados, mas não os melhores, diz a canção sobre os heróis irlandeses mortos, cantada em Rio Grande. Vou te levar para um lugar onde não sofrerás, Kathleen, diz outra canção sussurrada por um conjunto garboso de uniformes para uma esplendorosa senhora Yorke, que veio buscar o filho frustrado e abandonado pelo pai. Ela treme de paixão ao lado do marido do qual se separara depois que ele deu a ordem para queimar as plantações da família por contingência da guerra. Não escolhi essa música, diz ele, ao que ela replica: lamento, gostaria que tivesse feito isso.  

No fim, toda a rigidez imposta pelos limites da vida militar vão por água abaixo quando se sente necessidade de cruzar a fronteira para pegar os assaltantes que infernizavam as famílias . A transgressão consentida da guerra surge como solução para o que o manual e a diplomacia não conseguem resolver. O resultado é a quebra na rigidez do pai que rejeitara o filho e a volta do casal que tinha experimentado a longa ruptura em função dessa defasagem entre família e nação, entre amor e dever, entre honra e sobrevivência. No filme tudo se resolve, mas sabemos que na vida o conflito é mortal e nem sempre há sobreviventes.


A COMÉDIA ASSISTE AO DRAMA

Limelight é a narrativa de um casal improvável, o velho palhaço (Calvero, interpretado por Chaplin)  e a jovem e estonteante bailarina (interpretada por uma perfeita Claire Bloom). Há um vínculo de gratidão dela em relação ao seu salvador e que é confundido com amor. A renúncia da vida em comum, por parte do veterano, permite que a carreira da talentosa dançarina deslanche e encontre seu verdadeiro par. Mas não tão depressa: o sacrifício do personagem que tem um ataque cardíaco quando enfim é homenageado na fase terminal da sua carreira é ao mesmo tempo a celebração da solidão que se transmuta em arte pura.  A situação é representada pelo palhaço moribundo nos bastidores admirando o rodopio clássico da mulher que o ama e que assim se despede.

A impossibilidade da consumação desse relacionamento, em que uma arte (a da comédia) morre para dar lugar definitivo ao drama, é a grande tragédia do filme. O mundo perde a capacidade de rir e abraça definitivamente a de chorar. Que chora de forma poética e com noção da morte, sem a ilusão do eterno presente. Somos criaturas datadas e podemos transcender por meio da arte que chega à excelência. O empresário sempre gargalhando, a plateia organizada em claque, os indiferentes cidadãos que dão as costas para os ambulantes não estão á altura do que Chaplin quer atingir. Seu objetivo é o mais alto ponto do humano, sua decadência e sua glória.

O filme que chega ao desfecho nesse embate entre a dor e a superação é um momento decisivo do cinema, quando podemos encará-la como arte maior, que chega ao nível das grandes sinfonias ou dos romances fundamentais. É também poesia, lírica e épica, e teatro da melhor extração. Esse é o Chaplin que homenageia o personagem que o consagrou, o vagabundo que fez ir e chorar o mundo inteiro, neste filme que merece ser estudado em classe e por isso tem todas as qualidade e a grandeza de um clássico.


RITMO A SERVIÇO DE UMA CAUSA

Buster Keaton aparece como o atrapalhado pianista numa cena antológica de Limelight, numa aparição mais do que merecida, pois o jovem Keaton de A General é um dos modelos, a inspiração e a semente do vagabundo de Chaplin. Keaton é um artista de circo, um atleta, um gênio do timing, um cineasta impressionante e um ator de primeiríssima grandeza. O pobre cidadão marginalizado que acaba usando uma locomotiva para salvar os confederados é o improviso da coragem numa situação limite, em que o ritmo consegue achar uma saída: o andamento da montagem trabalha a favor de uma organização universal das capacidades individuais a serviço de uma causa. A General consegue dizer tanto com tão pouco.

 A exímia performance de Keaton neste que é considerado um dos cem filmes fundamentais da historia do cinema  alcança a permanência de grande obra de arte. Rever esses três filmes, entre tantos outros, é não esquecer nossas origens culturais: viemos das manifestações dos gênios e é para lá que devermos seguir. São obras tão solenes e importantes que deveriam ser assistidos de pé, como nas cerimônias que coroam o êxito dos heróis.