24 de novembro de 2009

PARECE MENTIRA


Nei Duclós

As melhores histórias são as que fogem do rema-rema diário. O fabuloso existia em qualquer cidade, quando figuras populares encantavam platéias narrando aventuras que trafegavam entre o assombro e a gargalhada. Como aquela, mais tarde reunida em livro, do sujeito que afiou uma moeda de um cruzeiro numa pedra lisa, colocou-a num bodoque e lançou-a em direção a doze pombas que estavam postadas num só fio. Todas fora degoladas. Ninguém acreditava, mas todos escutavam até o fim.

Essa linhagem era muito considerada nos ermos do Brasil profundo. Os autores tinham nomes folclóricos. Conheci um Oscar Mentira, que matou um capincho a remadas na época de seca. Há o Candinho Bicharedo, imortal personagem de Urbano Lago Vilela, colecionador e criador de preciosidades. Hoje, quando todos batem no peito jurando dizer a verdade, nunca se mentiu tanto. Perdeu-se o visgo da ficção dos antigos contadores. Num lugar de longo inverno, fogão a lenha, gente amontoada em galpões ou acomodada em salas generosas regadas a chimarrão ou vinho, eles confortavam os ouvintes, dando-lhes guarida num mundo hostil e sem imaginação.

Recentemente perdemos um contador de “causos” de supremo talento, o cineasta maior Anselmo Duarte. Ficaram célebres suas histórias, difundidas primeiro no antigo Pasquim e depois em várias entrevistas. A que mais me emocionou foi quando, celebrado como o vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1962 pela sua obra-prima “O Pagador de Promessas”, ele foi levado aos estúdios da Universal em Hollywood. Lá encontrou, logo na entrada, servindo de porteiro, um antigo cineasta que no Brasil tinha lhe dado lições valiosas.

Antes de assinar contrato com os americanos, Anselmo Duarte exigiu que contratassem o velho guru como seu assistente. Os executivos ficaram chocados: como um gênio poderia ter sido aluno do porteiro do estúdio?

A história, absolutamente verdadeira, parece até mentira nos dias que correm, pois ninguém abre mão de uma carreira internacional só para prestar homenagem a um amigo. Só mesmo um brasileiro, o cidadão que tem na alma a grandeza dos heróis antigos, os que eram protagonistas de sagas que ficaram na memória dos povos. Eles eram a prova de que somos maiores do que as gavetas onde a mediocridade tenta nos enquadrar.


RETORNO – 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 24 de novembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Imagem de hoje: Anselmo Duarte e Ilka Soares, ao lado do então prefeito de Salto, Vicente Scivittaro, no dia da inauguração do Parque Infantil, 1º/05/1953 (arquivo pessoal de Ettore Liberalesso). Tirei daqui. Eu tinha a idade dessas crianças quje aparecem na foto e um dos meu ídolos era Anselmo Duarte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário