2 de julho de 2009

POVO CONTRA POVO NO BEIRA-RIO


Nei Duclós

Procuro o que ler sobre a decisão da Copa do Brasil entre Internacional e Corinthians, nesta quarta-feira, no Beira-Rio em Porto Alegre, e não encontro. O festival de abobrinhas e falta de informação praticamente empurra o Diário da Fonte para mais uma edição sobre futebol. O nheco-nheco da mídia esquece de dizer algo mais proveitoso do que os 2 a 2 da partida, resultado que deu ao Corinthians o título, pois na partida anterior, no Pacaembu, tinha vencido de 2 a zero. Ou que Jorge Henrique e André Santos marcaram para os paulistas, enquanto Alecsandro fez os dois dos gaúchos

Estão mais preocupados com estatísticas, em quantas vezes levantaram a mesma taça, entre outras bobagens. As referências ao passado devem ser de outra qualidade, longe das estatísticas, que nada dizem. E o que deve ser destacado não é a obviedade do que vimos na tela, mas alguns elementos fundamentais do jogo, que foi excelente até o evento que trouxe sangue ao gramado. Preciso avisar, nesta altura de fim de campeonato: uso a palavra sangue em sentido figurado. Sangue significa briga feia. Dito isso, vamos ao que interessa.

O Colorado e o Timão vieram de longe, são times gerados pelo Brasil soberano e tem suas imagens vinculadas ao que chamamos povo, palavra complicada entre nós, mas não deveria ser assim. Povo quer dizer povo mesmo, gente, pessoas de uma nação, e não gentinha, gentalha, pobrerio, escravatura. O povo em preto e branco e o povo que veste vermelho são, ambos, brasileiros, e expressam sua euforia de pertencer a algo maior do que suas vidas limitadas. Algo capaz de dar essa alegria imensa que é a conquista de um campeonato de futebol, o esporte praticado por espíritos livres.

Encerrada a peleja, resta ao jornalismo descobrir porque o jogo teve aquele desenlace depois de oferecer, a maior parte do tempo, exemplos brilhantes de desenvoltura e objetividade. E isso está ligado a algumas conquistas humanas, como a percepção de que a realidade extrapola as dimensões físicas. Ou a de que a invenção dos espaços é uma espécie de exercício quântico das equipes envolvidas na busca não apenas do gol, mas da glória.

Quando vemos o gramado com dois times em confronto num momento decisivo para a vida de milhões de pessoas, não devemos pensar em quantos metros quadrados ele ocupa na superfície terrestre. Não vamos lá com uma trena ou com o tira-teima eletrônico medir a quantidade de quilômetros que um jogador consegue correr para chegar ao objetivo. Nem devemos fazer estatísticas de posses de bola. Também não podemos confundir continuidade da jogada com insistência. Quando a bola volta ao atacante, ele não “insiste”, como dizem os comentaristas, ele simplesmente continua jogando. Isso faz parte da natureza do futebol, como não faz parte da natureza do futebol a massa corpórea ou a altura de um cabeceador no miolo do vulcão, a pequena área. Jogadores baixos e magros são lisos e eficientes, não estão lá para praticar atletismo.

O futebol está em outros elementos. Por exemplo: cada time procurou estabelecer seu domínio por meio da minuciosa geração de espaços virtuais dentro do campo. É o seguinte: cavocar os milímetros de grama por meio de passes precisos, dribles que deslocam a posição dos adversários e criar triangulações sucessivas são caminhos para desencantar as amarras promovidas pela tensão, a irritação, a expectativa, o medo, as leis e a ansiedade. Isso me conquistou para o jogo de ontem (já que não tenho obrigação de ver futebol, só mantenho a sintonia se houver motivos). Sei o que disseram sobre a retranca corintiana ou a “insistência” colorada, mas isso não vem caso, é chato abordar o futebol dessa maneira. Os dois aspirantes ao título compuseram uma extensa trama, por meio de passes, toques mínimos, velocidade, arranques e ousadia, para definir o mando do jogo.

Funcionou. Nem sempre funciona. Vimos recentemente como as partidas podem ficar amarradas e insuportáveis de ver, como o Cruzeiro x Grêmio e Brasil x África do Sul, dois exemplos já citados aqui. O principal obstáculo é a percepção coletiva. Uma equipe é uma criatura, e assim é vista pela sua torcida. A pessoa que está na arquibancada tem olhos apenas para seu time. O futebol é muito complicado, você não pode enxergar a quantidade de lances promovidos pelo adversário na hora em que o teu time está avançando. Você enxerga, no máximo, o goleiro, e o zagueiro que consegue cortar a jogada ou derrubar alguém que arranca para o gol. Quando todos os jogadores em campo conseguem resolver os impasses, compartilhar vitórias e derrotas no meio do conflito, fica bonito de ver.

Os dois a zero do primeiro tempo, a cargo do Corinthians, parecia o mesmo do Brasil x EUA na decisão da Copa das Confederações. Ou seja, era possível virar. O Colorado conseguiu, a certa altura, chegar duas vezes à cidadela inimiga e aí veio a catimba. O Corinthians já estava escaldado por experiência anterior, com o Sport, quando deixou escapar a taça na final. Por isso não deixou barato. Para esfriar o ânimo do Internacional, Cristian caiu no gramado na hora de ser substituído. Isso deixou os colorados furiosos. Não deveriam ficar assim.

Se mantivessem a calma, poderiam imediatamente retomar o ritmo e chegar pelo menos ao 4 a 2, o que levaria aos pênaltis (N. da R.: não é bem assim; leia nos comentários). A fome de justiça pôs tudo a perder. Entraram na armadilha, perderam. Deveriam agir estrategicamente. Aguardar que o cara se levantasse. Mas a ansiedade, a ira fez com que os corpos incendiados pela decisão perdessem tempo num sururu ridículo. Esse desenlace não faz justiça ao jogo, mas faz parte de seu perfil. Fora de campo, criou-se um clima de fúria para o jogo, com ameaças de lado a lado. Acabou acontecendo, infelizmente.

Tem uma coisa: o Colorado deveria vestir vermelho em campo e não branco. O Internacional não é o Santos! Metade do carisma de um time está na camiseta. Você não pode abrir mão dela na hora agá.

Na luta de povo contra povo, ganhou o título a sofrida nação corintiana. Os colorados precisam se conformar. Lamber as feridas e não guardar ressentimentos. Ambos centenários, os times representam o que temos de melhor no futebol brasileiro. A briga coletiva foi a expressão de um país que ainda cai no conflito puro e simples, quando deveria fazer como no futebol, em que o confronto é ditado por regras e o gol, caminho para a glória, é a superação desses limites.

O gol é o vôo em direção à transcendência, quando enfim nos abraçamos com a glória ou nos preparamos para uma nova temporada de carga ligeira.

RETORNO - Imagem desta edição: Jorge Henrique (no centro, com Ronaldo à nossa direita) o grande destaque na final.

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