24 de julho de 2009

O BRASIL É OUTRA COISA


Nei Duclós

(Atenção: leia na seção Retorno e no espaço dos comentários a resposta do jornalista Augusto Nunes a esta edição do Diário da Fonte).

Augusto Nunes, no seu importante blog na Veja.com colocou a culpa das safadezas dos políticos brasileiros atuais nas origens e formação do Brasil. No mesmo blog, há um espaço dedicado às “lições” de Tancredo Neves que, como se sabe, tinha como seu vice o próprio José Sarney. Se Tancredo legalizou Sarney, até então figura destacada da ditadura, as origens (não a culpa) das mazelas do Senado devem ser atribuídas também a Tancredo Neves.

Mas Tancredo faz parte do panteão da neo-democracia, que nada mais é do que a consolidação do regime de 1964, com Sarney, Delfim Netto, até há pouco tempo o ACM (enterrado com honras de chefe de estado), medidas provisórias, política econômica, sistema político engessado e tudo o mais. Não se deve, atacando a nação, defender este regime espúrio, que faz rodízio de bananas no Palácio do Planalto com a conivência dos jornalistas, por meio do voto de cabresto (o voto útil), o marketing milionário, os arreglos dos donos do poder e a entrega da soberania.

Augusto Nunes é primus inter pares não só como jornalista – apuração, informação, análise - mas principalmente como texto – clareza, qualidade, talento. Mas neste caso ele está totalmente equivocado. Por ser uma sucessão de equívocos muito bem escritos (portanto, formadores de opinião), merece ser contestado.

O título do post é o seguinte: “O país nasceu por engano, balançou no berço da safadeza e agora é controlado pela aliança dos amorais.” O Brasil não nasceu por engano. O que nasceu com a expedição de Pedro Alvares Cabral em 1500 foi a América Portuguesa, não o Brasil. Isso aconteceu mais tarde. Como mostra a mais óbvia das fontes, a Wikipédia, “em 13 de junho de 1621, no contexto da Dinastia Filipina, o território da América Portuguesa foi dividido em duas unidades administrativas autônomas: o Estado do Maranhão, ao norte, com capital em São Luís, abrangendo a capitania do Pará, a capitania do Maranhão e a capitania do Ceará. E o Estado do Brasil, ao sul, cuja capital era Salvador, abrangendo as demais capitanias. Na época, o rei era Filipe III de Espanha, que era ao mesmo tempo Felipe II de Portugal. Em 6 de janeiro de 1815, no contexto das negociações do Congresso de Viena, o Brasil, unificado, foi elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves, com o nome de Reino do Brasil, por força de Carta de Lei do então Príncipe-Regente."

O continente americano foi um dos objetivos da viagem cabralina, que continuou sua trajetória depois do pouso por estas bandas. A tese do acaso, sem contestações até há alguns anos, faz hoje parte da mitologia da nação. Não pode servir para o achincalhamento das nossas origens, mas para o entendimento da fundação mítica da terra que mais tarde virou o Brasil. Na História, na literatura, na memória, coexistem as duas versões, a mítica e a factual. Nossa Independência foi fruto de uma longa guerra, de 1821 a 1823, mas prevalece a versão mítica do Grito. O Exército foi fundado em 1824, mas ainda hoje se celebra o nascimento das forças armadas brasileiras na batalha de Guararapes no século 17. Devemos ter claras as diferenças. Não se pode brandir o acaso como fonte de nossas mazelas.

Em “Visões do Paraíso”, nosso Historiador maior, Sérgio Buarque de Holanda, faz minucioso levantamento da projeção, nas terras descobertas, do mito do Paraíso. É assunto sério, que envolveu a Igreja e o trono e foi fundamental para as políticas de colonização. Esse é um assunto carnavalizado várias vezes, mas não pode servir de argumento para um artigo de denúncia, a não ser que seja levado em consideração.

Continua Augusto Nunes: “O Brasil balançou no berço da safadeza. Souberam disso tarde demais aqueles viventes cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar preciosidades por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para qualquer forasteiro, pois os nativos praticavam sem remorso o que só era pecado do outro lado do grande mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que desconheciam”.

É uma visão distorcida do cunhadismo, tão bem abordado por Darcy Ribeiro. O índio negociava guerras, terras, despojos por meio de alianças. Ele não “oferecia” a mulher, a mulher fazia parte das negociações guerreiras. Se você casa com uma índia, sendo colonizador, imediatamente, acreditavam os índios, que viviam divididos e em luta permanente entre si, você vira aliado. O cunhadismo é estratégia, não safadeza. Ver como safadeza é preconceito contra a nudez dos índios, contra culturas diferentes , além de ver ingenuidade de cultura atrasada onde existia luta pela sobrevivência.

Augusto Nunes: “O Brasil nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe num terreiro de candomblé pensaria em juntar na avenida, como fez o português Henrique Soares, maior autoridade religiosa presente e celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas, um padre de batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida da Sapucaí por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos cristãos no convívio amistoso com arcos, flechas e bordunas.” Pergunto: o que tem a diversidade de indumentária, hábitos e costumes a ver com o Carnaval? Achar que as pessoas estão fantasiadas, quando estão apenas usando suas roupas impostas por suas respectivas civilizações é no mínimo anacronismo. Não se deve confundir Sapucaí com Primeira Missa.

Augusto Nunes: “O Brasil balançou no berço da maluquice. Marujos ainda mareados pela travessia do Atlântico, ainda atarantados com a visão do paraíso, decidiram que aquilo era uma ilha e deveria chamar-se Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem, incontáveis milhas além, que era muito litoral para uma ilha só, e pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era firme a terra que pisavam.” Não se trata de maluquice, mas de informação. Os mapas da época colocavam o Brasil como uma ilha. Elas acreditaram nos documentos que existiam. Não foi porque estavam atarantados.

Augusto Nunes: “O Brasil nasceu preguiçoso. Passou a infância e a adolescência na praia, e esperou 200 anos até criar ânimo e coragem para escalar o paredão que separava o mar do Planalto, e esperou mais um século até se aventurar pelos sertões estendidos por trás da floresta virgem, num esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, os nativos da terra, os estrangeiros e seus descendentes sempre deixariam para amanhã o que poderiam ter feito ontem.” Não se trata de preguiça , mas, mais de uma vez, estratégia. Os portugueses não permitiam incursões no interior para não despertar a cobiça dos estrangeiros ou abrir a guarda para eles. E só rompeu com essa proibição por pressão empreendedora dos colonizadores, que precisavam expandir suas atividades. Arriscaram a vida subindo a serra. Subir bem acomodado num carro é que é preguiça.

Augusto Nunes: “Tinha de dar no que deu. Coerentemente incoerente, o Brasil parido pelo equívoco hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo do império português, o Brasil amalucado teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, o Brasil da safadeza acolheu o filho da rainha que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta, o Brasil preguiçoso foi o último a abolir a escravidão, o Brasil sem pressa foi o último a virar República, o Brasil carnavalesco transformou a própria História num tremendo samba do crioulo doido.”

Colocar a culpa “no crioulo” depõe contra o autor do artigo. “Tinha que dar no que deu” é uma jóia do vício de tirar conclusões de argumentações erradas, resultado do que já se pensava antes de brandir as “provas”. Chamar Dom João VI simplesmente de ladrão é ignorar, de propósito, a obra de estadista, tão bem apresentada por Oliveira Lima em seu clássico Dom João VI no Brasil. O Brasil preferiu permanecer Império, para manter sua unidade, do que esbagaçar-se em republiquetas. Quando Deodoro assumiu, o Brasil estava consolidado pelo longo reinado de Dom Pedro II . A Espanha ainda é monarquia, assim como a Inglaterra, a Holanda, tudo país atrasado, como se sabe.

Augusto Nunes: “O cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não mudou a essência da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste. Muito mais cafajeste, informa a paisagem deste começo de século. Depois de 500 anos, os herdeiros dos traços mais detestáveis do DNA nacional promoveram o grande acerto dos amorais, instalaram-se no coração do poder e vão tornando decididamente intragável a geleia geral brasileira”.

A essência do Brasil mudou: era soberano, não é mais. No Império, já se usava terno e gravata. A República inaugurada em 1985 é que tem a culpa de todas essas mazelas, não o Império nem a nascente República. É em nossa volta que está o erro, em nós mesmos.

Augusto Nunes: “Nascido e criado sob o signo da insensatez, o país que teve um imperador com 5 anos de idade que parecia adulto é governado por um presidente que parece moleque. Com um menino sem pai nem mãe no trono, o Brasil não sentiu medo. Com um sessentão no comando, o Brasil que pensa se sente sem pai nem mãe.” Com 5 anos de idade, Dom Pedro era uma criança, não parecia adulto, vestia-se apenas como mandava o protocolo da Corte. O poder era exercido pelos regentes civis, que a partir da maioridade do imperador, decretada aos 14 anos, continuaram mandando até o Brasil virar uma monarquia constitucional – com o Poder Moderador mediando conflitos.

Nem o Império, nem a República foram totalmente safadezas. Assim como o Brasil não nasceu por acaso. Nem os índios da época do descobrimento eram carnavalescos ou ofereciam mulheres sem objetivo nenhum, só porque seria, digamos, “tropicais”. O Brasil é outra coisa. Como dizia meu professor de História Colonial na USP, Istvan Jancsó, “é complicado.”

Não poderia deixar passar esse artigo. É obrigação fazer o contraponto. Faz parte da liberdade que construímos à a margem dos poderes, no exercício sagrado de nossa profissão.

RETORNO – Imagem deste post: Primeira Missa do Brasil, quadro de Victor Meireles.

RESPOSTA DE AUGUSTO NUNES

"Meu querido Nei, é uma honra ter um texto comentado por você. E fico muito grato pelas menções elogiosas. Mas não quis fazer nenhum ensaio sociológico sobre o Brasil, nem produzir um diagnóstico tão complicado em alguns parágrafos. São anotações ligeiras e bem humoradas sobre fatos históricos (e aí talvez discordemos quanto a certos itens, o que me parece pouco relevante). Fiz de conta que os personagens saíram de algum livro da turma do realismo fantástico. Sobretudo, não quis de modo nenhum explicar o presente botando a culpa no passado. abração. Augusto Nunes."

MEU AGRADECIMENTO

Prezado Augusto: essa é a vantagem de comentar um artigo produzido por profissional da sua qualidade e prestígio. A reação é de grandeza, o que muito me gratifica. O fato de uma edição do Diário da Fonte, esse jornal solo onde exercito a profissão que aprendi com pessoas brilhantes do teu nível, ser comentada por você é mais do que poderia esperar.

Não pude resistir de fazer esse extenso comentário, pois mesmo sabendo que texto pertence mais à literatura do que à sociologia e à História, ele é uma síntese do que muita gente pensa sobre nosso pais, com graves conseqüências, à revelia de quem a difunde. Como tens uma arma poderosa à disposição - teu texto de primeira inserido num veículo importante - é preciso que as pessoas que discordam e tem algo a dizer se manifestem.

Falam tanto em democracia e vemos como essa palavra serve de repasto para a politicagem. Mas, felizmente, democracia é o que fazemos nos nossos espaços jornalísticos, virtuais ou impressos. Uma liberdade conquistada e que precisa ser alimentada pelo conflito pautado na ética, o debate acima das posições ideológicas e políticas e dentro do espírito público que caracteriza o bom jornalismo.

Obrigado, Augusto Nunes. E continuo lendo e assistindo teu blog, excepcional em todos os sentidos. Abs. Nei Duclós

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