20 de julho de 2009

O VERBO HABITADO


Nei Duclós

As palavras fazem sentido quando alguém mora nelas. Casa abandonada, imóvel vazio, tapera, fachada, é o que mais tem na praça. Varandas com luzes acesas de dia, significando ausência. Cães com sede, caixa de correspondência abarrotada, janelões de vidro, prédios úmidos tombados à espera de leis: as cidades são um conjunto de fugas, intensificadas por praças às moscas, onde dormem maltrapilhos. Calçadas tomadas pelo comércio sujo, por estacionamentos improvisados, por postes que interrompem o caminho, por lajotas soltas. Grama crescendo no meio do asfalto. Paralelepípedos empilhados montam guarda junto a uma placa, de letras enferrujadas. Assim é o texto, o poema, o discurso, a reportagem: uma engenharia de ruínas.

A não ser que existam pássaros que são recebidos pela neta olhando, com sono, pelo vidro embaçado do inverno. Ela sorri, ao lado do leite morno. Há cheiro de edredons limpos que tomaram sol. Mesa do café com debate sobre um filme, um livro, uma notícia. Pilhas de papéis em desalinho, onde se acham preciosidades. Sopros súbitos de portas que se abrem. Passos de avó silenciosa a esfregar as mãos. Adolescentes vidrados numa tela. Homens e mulheres prontos para o trabalho. Barulho de escolas nos uniformes de alunos apressados. Assim é a palavra habitada, a que fica e deixa descendência.

Mas existem as férias, as viagens e por alguns dias ou semanas o verbo se esvazia de sentido e ficamos sós diante do mar e o destino, a esperar as baleias que ainda não aportaram por essas bandas. Temos as gaivotas, mas elas não são novidade, não obedecem ao ciclo das aves, não arribam, não nos deixam. Somos como as pedras nesta praia eterna, a aguardar navios ancestrais soltos pelo ar. Queremos a transcendência e para isso preparamos a frase, o verso, o quadro. Somos os artistas que cultivam o sereno em baías atormentadas por cardumes extintos.

Queremos compartilhar o júbilo da criação, sentinela de nossos hábitos. Queremos a música dessa transfiguração, a arte em todos os sentidos. Mas vemos pessoas impermeáveis, rostos de ganância, loucuras mansas, tremores brutos a cavocar linhas na paisagem humana sem futuro. Fazemos parte desse desespero. O espelho aponta como somos, idênticos aos que nos cercam. A diferença é que guardamos talentos, moedas de uma história oculta, para gastar em empreendimentos de sonhos. Somos mal vistos porque escapamos do ruído que vampiriza o tempo.

Por isso andamos em busca de ruas onde crianças brincam, adultos conversam, pipas se enforcam nos fios. Queremos bater no portão para dois dedos de prosa. Queremos lembranças, projetos, canteiros. Quem nos receberá com nosso verbo arduamente habitado? Talvez os que se foram e precisam de qualquer oração, desde que tenha calor, fogo branco. Talvez os que ficaram para trás e olham os comboios sumirem no horizonte. Ou talvez os guerreiros do front, com os quais nos enquadramos, a dividir armas de uma guerra insepulta. Combateremos lá, na sombra cometida pelo desatino e o desgoverno.

Estamos chegando. As palavras são apenas a vanguarda do que somos capazes de fazer, neste tsunami. Anunciamos a hera que cobre o muro e o transforma em cerca viva, a bola que é chutada para o centro da rua, o vento que deslumbra, a luz que derruba, os corações que ardem. Somos alguma coisa parecida com um anjo. Há um exercício de asas, um recreio de vozes, uma carga de raios. Notem como se agitam as casas abandonadas. Elas recuperam a esperança de expulsar o pó. Trazemos o pão na cesta de vime. Somos o despertar de uma estação ainda dividida entre o sono e a batalha.

RETORNO - Imagem desta edição: cena do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders.

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