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26 de julho de 2009
O QUE É UM INTELECTUAL?
Nei Duclós
Intelectual é quem produz pensamento. O intelectual orgânico, para aproveitar uma definição de Gramsci, é quem coloca a produção do pensamento a favor de um projeto de poder. Digo com minhas palavras, pois a verdadeira citação é de memória, para evitar que qualquer texto se transforme num amontoado de tijolinhos conceituais devassados pelo uso e sem nenhum sinal de elaboração, nem mesmo a reprodução de uma idéia com palavras próprias.
No original, o orgânico é quem, "em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e consciência a essa classe, também nos planos político e social". E o tradicional é "aquele que se conserva relativamente autônomo". Prefiro usar do meu jeito, substituindo a palavra "classe" por projeto ou sistema de poder e eliminando a palavra "tradicional". Adapto os conceitos em função da objetividade da argumentação. Isso também é produção de pensamento.
Intelectual é o Francisco de Oliveira , da USP, quando defende e divulga a tese do ornitorrinco, definição do Brasil como um cruzamento de miséria com agribusiness forte, entre outros paradoxos. Intelectual orgânico é o mesmo Francisco de Oliveira quando rompe com Lula ou quando apóia Lula no segundo turno. Ou seja, um intelectual pode migrar nas suas funções conforme sua atuação, sua prática, ou, para usar uma palavra que esteve na moda, sua práxis.
Intelectual é o Roberto Schwarz, citado um milhão e vezes aqui no Diário da Fonte quando define o vício do deslocamento entre realidade econômica e cultura hegemônica, esta sempre atrasada para viabilizar o papel subalterno que o país desempenha no mundo. Intelectual orgânico é o Roberto Schwarz quando se omite de um debate mais explícito sobre os projetos de poder, deixando à deriva sua teoria, para usufruto geral. Um intelectual precisa não apenas produzir pensamento, mas ordenar sua práxis em favor de um sistema voltado para a sobrevivência, no caso, na falta de um exemplo melhor, uma nação. E ainda mais específico, a nação brasileira.
Temos um intelectual voltado para a militância, como é o caso de Gilberto Vasconcellos, brilhante no seu diagnóstico sobre o enterro do trabalhismo como solução para a entrega da soberania do Brasil. Mas sua praxis erra quando luta por um vetor da gestão Ernesto Geisel dos anos 70, trazendo à tona Bautista Vidal e seus projetos de petroquímica e biocombustível. Tirar energia da biomassa foi no fim encampado pelo Bush e o Lula e significa exaurir o território nacional de seus recursos de terra arável, desviar um espaço estratégico para necessidades externas. O biocombustível entrou em descenso, pelo menos como exposição na mídia, depois da descoberta do pré-sal. Significa que a luta de Vasconcellos se esvaziou duplamente, quando foi encampada e quando foi deixada de lado, apesar de seu diagnóstico se manter atual.
Para um intelectual existir, é preciso sistemas de ensino eficientes, gratuitos e voltados para a pesquisa científica, não a pesquisa orientada para necessidades prementes do mercado, pois isso a iniciativa privada tem obrigação de prover. Você não pode transformar a faculdade de Economia da USP num balcão de negócios. Pega mal, ainda mais quando a crise estoura e o que era mercado é batizado de bolha. Você não pode atrelar quadros formados graças aos investimentos do dinheiro público a papéis secundários de pesquisas estrangeiras. Não podemos ser serviçais científicos.
Ultimamente se fala muito em aumento da massa crítica da produção de pensamento e resultados nos institutos brasileiro de pesquisa. Gostaria de saber o que há de vantagem para o Brasil nisso. Se todo esse material serve apenas para viver em torno de núcleos de produção de pensamento imperiais, das potências do Exterior, então valem pouco. Um intelectual precisa ser orgânico, não tem saída. Ele se põe a serviço de um projeto, que deve ser nacional, mesmo que tenha contribuição estrangeira. Outra coisa que acontece é que os quadros formados aqui acabam sendo exportados. Os pesquisadores estão certos. Quando não são valorizados, devem imigrar. Mudar essa situação deve ser projeto de políticas públicas.
Na imprensa, temos a miséria da filosofia. Os jornalistas, principalmente os mais notórios, não estão à altura dos atuais tempos bicudos, em que as exigências se intensificaram. Não estou falando em MBAs ou cursinhos rápidos no Exterior. Isso é conselho de consultoria, serve para dar status, não produção intelectual pesada, em universidade. Só assim é possível dizer alguma coisa sem cair no lugar comum. Os leitores também produzem pensamento e têm agora condições de veicular sem a ajuda nem de instituições de pesquisa e ensino nem de empresas de comunicação (mais envolvidas com grandes produtores de pensamento, como o colunista fixo da Folha há muitos anos, o atual presidente do Senado!). Faça um blog sobre ciência e pronto, tua palavra está lá, intacta.
Cabe a nós destacar as conquistas principalmente de intelectuais não notórios e que não estejam envolvidos nos esquemas mesquinhos de ascensão social, como aconteceu debaixo das minhas vistas quando motoristas de velhos calhambeques surgiram em palácios republicanos de luxo vestidos como príncipes. Devemos ficar em oposição à idiotice reinante, por mais notória e poderosa que seja. A falta de presença maciça de intelectuais responsáveis na superfície das mídias e da indústria cultural faz com que todos regridam à idade da pedra.
É como dizia o José Lewgoy no Pasquim quando comentava filmes de Mizogushi e Kurosawa: “É preciso ver esses filmes senão todos vão achar que Harold and Maude (um filmeco inglês sobre a relação platônica entre um guri e uma velha, muito famoso na época) é filme de arte”. Entrar nessa roda viva implica também o desmascaramento dos pseudo intelectuais, os que se comparam a Goethe e posam de estátua. Devemos agir para erradicar a distorção que a palavra intelectual atingiu entre nós. Como muitos intelectuais entraram na disputa pelo butim, ou se omitiram, ou apenas ficaram ostentando status e cargos, deixando a nação à mercê da bandidagem, a palavra intelectual virou nome feio, xingamento entre nós. Isso tem de mudar.
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel e Carla Duclós no Pergamonmuseum, de Berlim.
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