6 de julho de 2009

MICHAEL JACKSON E A INFÂNCIA REINVENTADA


Nei Duclós

Michael Jackson foi maltratado pelo pai na infância, que o transformou em escravo – como era costume tanto em Indiana, onde MJ nasceu, como no Brasil, onde era permitida a compra da alforria por meio das atividades comerciais, entre elas a de vender a força de trabalho alheia, inclusive dos filhos, a maioria paridos para esse objetivo. Quando conseguiu a independência financeira – principalmente depois de se transformar em vampiro e morto-vivo em Thriller - foi na Wacko, a megastore de quinquilharias de Los Angeles, comprar uma infância de criança branca. E a instalou na nação imaginária, Neverland, tirada da Disney, que por sua vez tirou da literatura britânica, povoada apenas por crianças como ele.

Sua arte é originada pela dança dos escravos que entretinham seus senhores dando passos em troca de uns trocados. Evoluiu para uma sintonia com a própria raça e desprendeu-se dela a partir do mega-sucesso. O que ele desenvolveu nessa trajetória adquiriu forma própria, uma identidade visual poderosa, desenhada por uma coreografia rica em detalhes, que descobriu no corpo novas formas e movimentos. Instaurou o ritmo de uma nova mímica, inspirada nos efeitos da velha luz estroboscópica das danceterias, em que o olho enxerga apenas trechos da evolução, fazendo com que a mente do espectador carregue uma performance composta de síncopes, como se a vida fosse um conjunto de saltos.

Com sua arte refinada, MJ é a representação de uma sociedade que se desvencilhou de suas raízes. Idolatrado por libertar as massas para uma série de gestos inéditos, apropriados para o uso em ambientes virtuais, MJ inventou a chance de refazer a própria vida, recomeçando da infância, que, com o apoio de seu faturamento extraordinário, deveria ser oposta à que ele sofreu. No fundo, não teve infância, ou ela estava ligada à dor e às algemas seculares do povo a qual pertencia. Livrar-se da canga por meio da plástica, de uma nova pele e de uma voz que se transformou apenas num falsete, cabia perfeitamente no mesmo diapasão da obra que impressionou o mundo.

Pode-se dizer que MJ tornou-se criança ao atingir o ápice de sua arte adulta, num movimento cíclico que o devolveu para emoções imaginadas e jamais vividas, como o fato de ter tempo e uma série de amigos para desperdiçá-lo. Claro que todo esse projeto se esfacelou diante da barreira imposta pela indústria que se alimentava dele. Para continuar a explorar ao máximo a dança, era preciso cobrir de infâmia o dançarino, que atrapalhava os negócios. A falta de estrutura para aguentar a transformação que o colocou numa sinuca de bico, tornou MJ refém das armadilhas mortais da sociedade do espetáculo, que cavou o fosso do ídolo para depois cobrar ingressos nos funerais.

O pai de MJ é apenas o sintoma dessa doença que consome o mundo e não dá vez para os devaneios, os sonhos, a alegria e o prazer acompanharem a obra de arte. Essas coisas humanas não podem ficar próximas demais, reais demais, perigosas demais. Deve-se eliminar a fonte para que a casca vazia brilhe sobre os escombros, que nutre os vampiros.

Toda arte é denúncia, mesmo em MJ. Ele nos alertou para a possibilidade de uma nova maneira de palmilhar o mundo, em que podemos iludir os espectadores negaceando a direção do nosso passo, fazendo das mudanças de direção um projeto de vida, e tocando partes esquecidas do corpo. Trazendo para a superfície o que nos incomoda e seduzindo pela graça o olhar exausto de tantas crueldades.

Pena que a gente só descubra essas coisas fundamentais depois que o gênio parte. É quando nos dedicamos a decifrar o presente que nos foi dado e que, muitas vezes, esnobamos porque não compreendemos. Ele risca o céu como um meteoro e nos desperta no meio da noite. Ouvimos então o som das esferas, que aos poucos se extingue como um pálido círio na nave da catedral assombrada de um conto de fadas.

RETORNO - ANTENOR NASCIMENTO SOBRE O REFÚGIO DO PRÍNCIPE

Meu colega da Istoé do final dos anos 80, Antenor Nascimento, um dos grandes textos da imprensa brasileira, leu meu livro de contos e crônicas “O Refúgio do Príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento”. E escreveu o seguinte texto, que já faz parte das jóias da minha curta, mas significativa fortuna crítica:

“Caro: Acabei de ler O Refúgio do Príncipe. Não sou crítico literário e não vou falar do texto, que é uma maravilha. E mais, diferente de tudo o que eu conheço (o que eu conheço dos escritores mais modernos é um articialismo e um excesso de elaboração difíceis de tragar). Vou usar apenas a percepção de um leitor comum. O que eu senti, ao longo de todo o livro, é uma espécie de doce melancolia. Não pense mal de mim -- não sou masoquista -- mas é uma melancolia que agrada. Sabe? À medida em que eu ia lendo, também eu comecei a viajar pela região da memória. E lembrei de coisas que, Deus do céu, havia décadas que eu não lembrava. Como naquele texto em que você narra a pescaria noturna com o seu pai. Cacete! Eu também pesquei com o meu, no Rio Paraíba, também de noite. Isso foi há mais de quarenta anos. E acabei me lembrando até de detalhes daquela pescaria. E tantas coisas mais. Os personagens são ótimos. Gostei principalmente do vigia do mar e da ascensorista que lê clandestinamente. A gente costuma sobrevoar as pessoas. Não presta atenção. Não as vê. Mas você faz isso, e descobre um romance em cada um.
É isso. Li seu livro e fiquei diferente.
Um grande abraço.”

Antenor adquiriu um exemplar autografado do Refúgio, como muitos outros leitores. Faça como eles. Envie um e-mail para neiduclos@hotmail.com solicitando um. É só vinte reais. Um gesto para o escriba veterano, que vive do que publica.

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