7 de janeiro de 2016

TOUCH OF EVIL: APARÊNCIAS NA GRANDE ARTE



Nei Duclós

Com instrumentos óticos como a câmara escura, os grandes pintores, a partir do século 15, descobriram os princípios da “fotografia”, inventada séculos mais tarde, mas guardaram o segredo para mostrar suas obras como pintura. O resultado são detalhes, rostos, roupas, ambientes num exagero de perfeição que fizeram a fama de artistas notórios, especialmente Vermeer, mestre dos quadros de rigoroso acabamento. As lentes e espelhos óticos foram inclusive os responsáveis pela perspectiva, atribuída aos mestres.  Essas descobertas recentes reforçam a ideia de que as artes visuais são um jogo ilusório com a percepção humana e as aparências são sua essência.

Orson Welles sabia disso como poucos. Sua obra prima, Cidadão Kane, de 1941, é a trajetória das muitas personas visuais do personagem principal, da mocidade à velhice, reproduzida por todas as mídias, do cinejornal ao jogo infinito de espelhos colocados em paralelas. Orson pontificou longamente sobre as ilusões da percepção no filme Verdades e Mentiras, de 1973, em que ele brinca com a ideia de autoria em arte. No seu festejado noir, Touch of evil (1958), as aparências são o destaque nos diálogos (ele é autor do roteiro), nos planos (é o diretor) e na postura física dos protagonistas (ele ocupa o centro da trama).

Orson subverte o perfil canônico dos grandes atores que o acompanham nesta obra. Charlton Heston, o herói americano dos épicos bíblicos, com seu gigantismo que o forçava a se retorcer todo para caber na moldura da tela, é um mexicano com sotaque e bigode. Marlene Dietrich, a musa do canto e da dança, que veio do mundo europeu perdido para brilhar em Hollywood, é uma obscura dona de cabaré, lúcida sobre a rede de ilusionismo que recai sobre seu amado, o detetive Hank Quinlan, interpretado pelo obeso Welles (encarnando a figura do Kane velho).

Marlene nota a aparência miserável do policial corrupto, que deixou de beber para se enterrar nos doces e no chocolate. Hank Quinlan, com sua aparência grotesca, é a imagem obsoleta do policial intuitivo e corrupto, amado em sua comunidade, mas com um prontuário que não resiste a uma breve análise da autoridade policial honesta, interpetada por Heston. Enquanto Marlene é a lucidez sinistra, Janet Leigh, a noiva deslumbrante do honesto policial mexicano, é a ingenuidade em forma de loura de vestido apertado e salto alto. Uma performance naif que a leva para mais uma cena de terror, com direito aos mesmos gritos de Psicose.

Aparentemente e um filme policial, mas é uma revelação sobre as aparências que enganam a percepção. Os mexicanos são tratados com desprezo naquela pequena cidade da fronteira, identificados com o crime, o que é contrariado pela honestidade de Heston (um hispânico com virtudes num ator americano!). O execrável Quinlan no fundo tinha razão em suas suspeitas sobre o assassinato de um big shot local, que explodiu num carro junto com sua amante. Visto como uma pessoa rara por Marlene, ele seria um brilhante detetive estragado pelo mau policial que o levou à ruína.

O que parecia ser um golpe do baú – o namorado da herdeira mata o patrão para ganhar a herança – era de fato. O que parecia ser só um policial incompetente que plantava provas, revela-se um personagem com grandeza. A loira fiel teme a desconfiança do marido. O policial honesto revela-se um omisso em relação à sua noiva, deixando-a à mercê da quadrilha que o perseguia. E o que parece ser um filme noir é uma obra que influi sobre inúmeros filmes posteriores. Lá está a delinquência juvenil cercando suas vítimas, tão explorada em outros filmes, a defesa da democracia no varejão das investigações (“o trabalho policial só é fácil numa ditadura”). Lá estão os amores perdidos, o sufoco das cidades pequenas, a ambição dos emergentes, tão comuns em filmes que assistimos ao longo das décadas.

E lá está, o que é mais raro, uma forma múltipla de fazer cinema a partir de um gênero, o policial noir, mas que extrapola a moldura e nos assombra pela perfeição dos detalhes, como acontecia com os grande mestres da pintura. O domínio de Orson Welles sobre seu ofício é total, completo, à altura de seu estigma mais notório, o de ser gênio.


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