26 de abril de 2014

O PISO SEM FUNDO DA PALAVRA



Nei Duclós
sobre o livro de poemas OUT SIDE, 
de Mario Bakuna (foto).


É feito de feixes foscos e luminosos o piso complicado da palavra a qual temos acesso de todas as formas. Dá vontade de andar nele como se palmilha uma estrada, mas isso seria afundar no cabelo da Medusa. Há muito ouriço riscando serpentes e exercícios de raízes que chegam à tons para providenciar uma busca de céu.

A poesia de Mario Bakuna pode ser identificada no meio desse emaranhado em que nos confundimos. Ela se destaca não pela pose de originalidade ou a vontade de impactar, já que existe a consciência da inutilidade desse gesto na maré alta do apocalipse. Estamos condenados e nos resta gerar o impossível momento do encantamento sem abrir mão da herança mais densa, a lucidez, essa neblina com vocação de faísca..

O livro de Mario Bakuna nos conquista por navegar em versos que se contorcem de tanta individualidade. Mas só percebemos sua força no mergulho da leitura, superficialidade aparente que oculta a máscara da danação pelo escuro. De repente, em meio à busca da palavra inexata mas concisa e traiçoeira, ele nos diz a que veio:

“Quando eu tenho algo a dizer
me calo para não sufocar a paisagem.
É tão difícil suportar calado as intermitências entre um verso e outro
que eu prefiro apaziguar minha vontade deixando que o silêncio faça a sua música.
Esvaziar esse balão de retrospectivas
para que não exista nenhuma catarse.
A poesia é um abismo
não um espelho.”


Pronto, estamos cooptados por uma poesia que não oferecia nada e que salta na paisagem como o percurso ao inverso de uma estrela cadente. Vem do fundo e alcança o precipício que se espraia acima do nosso olhar:

“O lugar que você existe em mim
eu só alcanço se fechar os olhos. “

ou

“Quando a carne sofre é amor
Um homem só é jovem quando está apaixonado!”

É uma temeridade selecionar poemas ou versos num trabalho encadeado e surdamente musical, feito com o rigor de um saltimbanco certo de que irá conseguir a próxima refeição. Seu alvo é nossa indiferença: estamos treinados para não ver, mas Mario Bakuna se insurge. Não quer a submissão do leitor tradicional ou o artificialismo do falso leitor/autor, que em tese participaria da obra. O paradoxo é que admitimos o poeta sem sermos convidados à passividade e invadimos sua palavra respeitando as balizas interpostas num caminho ouriçado de má conduta e de uma ética que só a transgressão experimenta. A transgressão de perder a forma para encontrar o núcleo do drama.

Perdemos ao ler esta poesia que não tinha nada para acontecer e se revela absurdamente perfeita. De uma perfeição de piso que se mexe como bailarina em abismo sem rede de segurança. Não um piso de mármore, necrópole do poema. Mas um chão que no fundo é nuvem, um movimento que nos leva à necessária contemplação, uma dor que gera felicidade pelo que traz de revelação.

Perder-se, aqui, é encontrar um coração habitado, um autor que se entrega ao verbo com a gana dos amantes em êxtase. Não se trata de gozo, mas de literatura, essa palavra que o mundo tenta enquadrar porque sente medo.