Nei Duclós
Não existem filmes realistas. A realidade é fora de forma e
um filme é o exagero dos limites – enquadramento, timing, script,
interpretação, direção, produção. Assim como não existem reconstituições de
época e sim a disposição de cenários em função da narrativa, ser “fiel aos
fatos” é só mais um recurso da ficção. Como já notaram os irmãos Cohen que
colocaram no início de uma de suas obras o jargão “baseado em fatos reais” pontuando
uma história totalmente inventada. Eles zoaram com essa falsa percepção de que
o cinema tem a ver com a realidade, quando é pura ilusão, assim como a própria
realidade, que depende da percepção de cada um, como destacou brilhantemente Akira
Kurosawa em Rashomon.
Como vivemos numa época de denúncias, de desmascaramento dos
poderes, de flagrantes no atacado e no varejo, da publicação de todos os
segredos oficiais, de revisionismo histórico e de overdose de notícias e
imagens sobre acontecimentos por todo o mundo, de multiplicação de mídias e de
olhos escancarados de milhões de espionagens, o cinema procura acompanhar as
tendências, pesquisando o ineditismo dos enfoques para contribuir com algo
original na maçaroca de coisas oferecidas pela indústria do espetáculo (onde
foi incluída não apenas as artes, mas principalmente a política).
Dois filmes de 2013 “baseados em fatos reais” funcionam um
como o avesso do outro, sob o aspecto de um tema candente e pontual, o racismo.
Em 12 Anos de Escravidão, de Steve McQueen, há a abordagem de um aspecto importante
do assunto, os negros libertos convivendo com o regime escravocrata. E em
Captain Phillips, de Paul Greengrass, o tema são os detalhes sobre a pirataria
somali contra navios da marinha mercante americana. No primeiro, os brancos são
horrendos e maus e maltratam até o mais absoluto desespero as pessoas negras sob
seu domínio e tacão. E no segundo, os negros são horrendos e maus e enlouquecem
o branco capitão do navio. Por coincidência, os dois tem exasperantes 134
minutos, mais de duas horas! em sequências intermináveis de maldades e maus tratos.
Para que tantos minutos? São filmes que repisam seus
enfoques engessados como a querer provar que a cor da pele faz parte do destino.
Quem tem a pele clara em “12 Anos” não passa, com raras exceções, do dito-cujo
em forma de gente: destrói famílias, suborna, vai contra a lei, mata inocentes,
explora a mão de obra até destrui-la. Há ainda cenas de sadismo como a
justificar as retaliações que disso poderão advir. Não se sai impune do filme,
mas com chibata na mão para vingar-se de tanta maldade contra os negros. Por
sua vez, quem tem a pele escura em Captain Phillips é apresentado como uma
monstruosidade física temperada pela crueldade sem limites.
Assistindo penosamente os dois filmes, que usam como escudo
os depoimento dos protagonistas, dá para elogiar apenas a performance de alguns
atores, como Tom Hanks, que é top, com sua elaboração que sugere naturalidade, e
Chiwetel Ejiofor, que promete ser melhor no futuro, já que aqui foi obrigado a
fazer caretas demais. Mas vê-se que tem formação e força de um grande ator. Há excelentes coadjuvantes: o somali Barkhad Abdi (na foto principal, com Hanks) e o ator alemão Michael Fassbender (na foto abaixo, com Chiwetel).Os
dois filmes conseguem se estragar pela overdose. Poderiam ser bons.
O que estou querendo provar? Que não houve crueldade na escravidão
na América e que não há culpa entre os piratas somalis? Claro que isso seria
uma forçação de barra também. Mas estamos falando de cinema, não de realidade.
As duas narrativas escorregam para o abismo da overdose. O tempo que se perde
em chibatadas sem fim nos escravos negros ou de violência contra o capitão
indefeso poderia ser mais enxuto para que a verossimilhança não ficasse a
serviço da retaliação e do ódio, muito mais do que da denúncia.
No fundo, são filmes que exageram para conseguir repercussão
e plateia, não porque estejam imbuídos de motivos nobres. São filmes comerciais
que usam a marca do realismo para justificar seus exageros narrativos. São
insumos para uma tendência forte hoje, o de apontar o dedinho contra os
interlocutores acusando-s de apartheid, racismo ou politicamente correto, ou
seja o que for. Precisamos de cinema mais competente e não de propaganda, tanto
a favor da cavalaria americana com sua marinha de guerra tão eficiente, quanto
a favor dos despossuídos em sequências múltiplas para provar que tem razão, o
que já está explícito desde as primeiras cenas.
O recado em 12 Anos é, claro, de condenação aos algozes, que
pertencem a uma outra época, mas que no frigir dos ovos são substituídos pelos
contemporâneos. E Captain Phillips se atrapalha ao mostrar um universo mais
complicado do que o mundo certinho e correto do navio que vai levar comida para
os famintos (veja que ironia!) por águas africanas. Ser branco ou negro pode
virar um pesadelo com filmes como esses.