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8 de outubro de 2009
SOMOS UM PAÍS DE ESCRAVOS
Qual a relação entre o mega-empreendimento Cutrale, as fazendas coloniais de cana-de-açúcar, a invasão do MST e as empregadas uniformizadas nas novelas sendo escorraçadas pelas patroas em todas as cenas? A sintonia entre esses fatos é a escravidão, que é a medida de todas as coisas no Brasil, segundo a clássica tese de Joaquim Nabuco em O Abolicionismo, lançado em 1884. Ele previu que, pela demora da emancipação, o servilismo se tornaria endêmico e duraria um século.
Nabuco acertou em cheio. Quando vemos a Cutrale, segundo denúncias, grilando terras públicas para fazer um megaprojeto de produção de suco de laranja, movido a agrotóxico, vemos aí o velho senhor de escravos que se assenhorava do território nacional para plantar cana movido pela força dos negros. E quando vemos a bandidagem de uma porção do MST destruindo sete mil pés de laranja, e, segundo denúncias, roubando óleo diesel, dilapidando a fazenda e saindo dando adeusinho, vemos a insurgência da escravatura manipulada por verba federal e internacional – grandes somas são repassadas pela ONG alemã Via Campesina. No fundo, é o velho quilombo (onde também existiam senhores de escravos) contra o latifúndio. E a negra na cozinha, de uniforme de doméstica, sendo amiguinha da patroa ou sendo expulsa da sala, é uma reiteração desses papéis sociais que jamais cedem.
Quando Nabuco escreveu seu libelo a favor da libertação imediata de uma massa de um milhão e meio de pessoas ainda sob o jugo da escravidão, tudo já estava contaminado numa sociedade que por 300 anos, até aquela época, funcionava a partir da posse das pessoas para o trabalho forçado. Posse ilegal desde a lei de 1831, que se tornou letra morta e fora firmada segundo normas de um acordo internacional, que proibia transportar estrangeiros e mantê-los na soga.
Na época em que Nabuco escreveu seu livro brilhante, quando amargava uma derrota eleitoral vivendo algum tempo em Londres, estava em vigor a chamada Lei do Ventre Livre, de 1871. Sempre aprendi que a partir dessa data toda pessoa nascida em senzala estava automaticamente livre. Mas não é verdade, como reaprendemos em Nabuco. O ingênuo, como se chamava, deveria permanecer escravo até os 21 anos. Sabemos como funciona, no Senado brasileiro, as emendas. A Lei do Ventre Livre assim adiava a situação por mais de uma geração, pois as crianças nascidas depois de 1871, tanto do lado dos senhores como a dos escravos, continuariam vivendo num país de escravos até a idade adulta. Isso repercutiria pelo tempo afora, como de fato aconteceu.
Somos ainda um país de escravos. Faça um balanço da sua vida profissional. Você se sente livre? Eu nunca me senti, por um motivo óbvio: estive atrelado ao patronato por décadas e por mais que tenha publicado textos que considero importantes, nunca tinha, até este século, me sentido realmente à vontade para dizer o que penso e sinto com todas as letras, como faço aqui (a não ser, claro, na literatura, onde publiquei o quem bem entendi). Na vida profissional, havia sempre uma fisga, uma parede, uma barreira. Por um lado é bom pois evita que você, destrambelhado, acabe escrevendo besteiras. Mas de outro acaba te acostumando à canga e assim vamos envelhecendo, enquanto tempo desperdiçado se acumula atrás da porta.
Não se trata daquela velha liberdade cevada em ambientes escravizados, quando imaginamos que o negócio é sair por aí feito louco sendo livre. Mas a liberdade num mundo civilizado, em que é possível cumprir destinos, seguir vocações, ter uma vida adulta responsável e prazerosa, sem que tenha um feitor em cada canto sacudindo o dedinho e dizendo que as coisas não são bem por aí. Sim, uma liberdade compartilhada numa sociedade livre, com leis que funcionem, desenvolvida e com uma dose mínima de felicidade. Não a alegria do corpo pelado exposto em praça público e sorriso profissional. Mas a legítima felicidade de realizar alguma coisa que preste e viver segundo normas de solidariedade, respeito e grandeza.
Somos um país de escravos. Até quando, mestre Joaquim Nabuco?
RETORNO - Imagem de hoje: Priscila Marinho, de costas, uniformizada, com Christiane Torloni dando gritinhos em Caminho da ìndias: a endêmica luta de classes amortizada no imaginário pela comédia.
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