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16 de outubro de 2009
COMBOIO DE LIVROS
Nei Duclós
Livro tem pai e avô, como todo mundo. Nenhum autor importante, desses que deixam marca, escreve a partir do nada. Ninguém que vá morrer consegue inventar, sem base, algo que preste. O truque dos gênios é participar de uma linhagem, sem precisar dar sempre o crédito (isso fica a cargo dos estudiosos, os apaixonados dispersos no tempo). Artistas africanos anônimos e ancestrais foram apropriados por Pablo Picasso. MacBeth e Hamlet já tinham sido escritos, mas Shakespeare fez muito melhor. Os Irmãos Grimm, todos sabem: colheram as histórias do povo e colocaram em papel impresso. Cervantes usou os romances da cavalaria para talhar seu antídoto.
Picasso falava em roubar, mas era seu jeito debochado de abordar coisas sérias. Não acredito nessa definição. Existe o plágio, o clone, mas isso é outra coisa. Está cheio de ladrão por aí, mas os mestres são de outra estirpe. Trabalhar uma história e elaborá-la de tal forma que cruze os séculos é entender que literatura, como toda arte, é matriz, tem antepassados e gera seres vivos. Chamam de livros, mas podem ser páginas virtuais em telas luminosas, espalhadas em inúmeras fontes. Por um tempo foram manuscritos perdidos, obra de copistas, papiros, tábuas, argila. Não importa a forma, mas a elaboração que identifique a obra.
O papel impresso, por existir há muito tempo, parece ter se transformado na natureza do livro, mas esse é um erro de percepção. É imbatível como objeto a ser levado para a varanda, o quarto, o banco da praça, do ônibus. Mas acredito que hoje existe um exagero de livros não reconhecidos como tal espalhados pela rede, assim como temos livros perdidos, mofados, jamais reeditados e que fazem parte de um acervo de maravilhas ocultas, como os tesouros das lendas, essas que eram transmitidas pela voz por gerações e só depois pousaram, modificadas, em volumes que ocuparam estantes.
A essência do livro, da literatura, é habitar o espírito. Vejam bem que não usei missão, função, “papel” no sentido de incorporar um personagem. Porque é dentro de nós que uma história, uma teoria, uma lenda, uma parábola, um texto, um poema, uma obra habita. Não vamos procurar lá na sala encerada, na biblioteca opressiva, nas prateleiras convulsas, nos armários fechados a glória de existir da literatura. Também não vamos procurar apenas nas conversas eruditas, embora estas possam nos levar pela mão até onde nem imaginávamos com nossa precária leitura. Não se trata de fazer pouco do acúmulo ou das análises, pois tudo tem lugar nos livros.
O fato é que os antigos tinham mais sabedoria, pois não era preciso o livro para que a literatura habitasse as gentes. Bastava um narrador em praça pública, um poeta popular, um arauto, um aventureiro e suas memórias ditas em cima de um caixote, uma gávea. Não havia intermediários, a não ser o autor da saga, que assim se transmitia diretamente para o coração do povo. O livro no fim aprisionou o talento a sete chaves e ficou cada vez mais custoso abri-lo para ler, à medida que as atrações da vida se multiplicaram e se tornaram mais acessíveis.
Quantos livros deixei pela metade? Quantos dormiram na minha estante, às vezes por vinte anos, para enfim eu poder ser capturado por eles? Ler tudo é impossível, devemos ler só o necessário e cada um sabe sua cota. Ao mesmo tempo me pergunto: e se eu não os tivesse à mão, o que seria de mim? Brutalizado pelo exílio, eu amargaria a pena de viver tentando imaginar o impossível. Seria uma bruma de possibilidades e talvez eu quisesse, a certa altura, escrever algo para poder ter o que ler. Esse é o segredo dos diários: todos os dias colocamos a vida nele para um dia podermos ler o que passou por nós como um comboio. É nossa obra favorita.
Chegará esse tempo em que verei a paisagem do que escrevi. Mas isso vai se desenrolar lá fora do trem. Dentro, sobre uma poltrona amigável, eu continuarei a abrir os grandes autores, os que jamais devem se distanciar de nós. Porque se algo fica na terra, é a literatura, semente de obras ao infinito.
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