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4 de outubro de 2009
SALINHA DE SHOPPING É ERGÁSTULO DE ESCRAVO
Um segurança negro foi com a família num mega-supermercado e ficou no estacionamento cuidando da sua neném enquanto a mulher e filhos faziam compras. Tinha acabado de adquirir seu EcoSport de IPI reduzido e em infinitas prestações. Desconfiado de uns motoqueiros, saiu do carro para ver o que acontecia. Imediatamente foi rodeado pelos seguranças, certos de que o negro não teria cacife e fatalmente estaria roubando o carro. Surrado, humilhado, quase morreu, mas conseguiu convencer os algozes de que era um homem sério e honesto. Foi salvo quando voltou ao estacionamento e lá estava a família toda, esperando, preocupada, pois a neném continuava dentro, dormindo, sozinha.
Vimos isso a toda hora, virou moda. Um vendedor que estava dentro de um shopping não teve a mesma sorte e foi assassinado pelos seguranças. Onde? No ergástulo do shopping. Aprendi a palavra ergástulo em O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, livro fundamental do Brasil lançado nos anos 80 do século 19. Eram prisões onde se colocavam os escravos. Hoje, a democratização da tortura colocou os ergástulos nas famigeradas salinhas dos shopping centers, onde os suspeitos são torturados e mortos, e depois jogados fora em carrinhos de supermercado e embrulhados em sacos de lixo.
Os seguranças dos shoppings são a encarnação dos feitores antigos e estão ali colocados exatamente para erradicar as ameaças da escravaria naquele tipo de estabelecimento, que, sob todos os aspectos, representa a ostentação da Casa Grande das velhas fazendas coloniais. Não é de admirar que aconteça isso. Primeiro, porque os shopping do Brasil, pelo menos os mais notórios e pioneiros, foram implantados pelos neo-coronéis de uma família nordestina (poderia ser de São Paulo, onde a escravidão pegou fundo, ou de Minas, ou de qualquer lugar do Brasil). Eles adaptaram uma idéia americana e trouxeram dos engenhos seculares toda a concepção da sociedade de colonial de classes, com um centro irradiador e poderoso (a mega-loja, ou o mega-supermercado) e seu entorno (as boutiques de luxo, o fast-food, o lazer supercaro).
Para que desse certo, era preciso que a situação brasileira se mantivesse intacta na sua divisão entre a superconcentração de renda e a escravidão. Nabuco prova em seu livro que a escravidão “enerva” toda a sociedade, ou seja, é o imã que une (ou desune) todos numa só nação. Ser proprietário do alheio é o que pega em todas as atividades, nichos e classes. O que dizem os bandidos no assalto? “Onde está o MEU dinheiro?” Ou seja, eles são proprietários do dinheiro dos outros, basta que se lembrem disso. Na política, sabemos do que se trata. Como a sociedade assim contaminada pela escravidão continua marcando passo, é preciso que se cerquem de muros e guardas os lugares das compras, pois na rua é um perigo.
Todas as ameaças existentes numa sociedade que confina a maior parte da população aos ferros e ao açoite se debruçam sobre o shopping center, que atrai a cobiça de quem nada tem, ou quer ter mais, ou simplesmente gosta de exercer seu ofício de ladrão. Os seguranças servem para colocar todo mundo nos eixos. Por meio do terror, obrigam a massa a se comportar e a consumir sem tugir nem mugir (de preferência, que sejam todos brancos). Os donos das lojas, que pagam fortunas para os maganos tubarões dos shoppings, também precisam desse serviço, senão acham que serão destruídos pela escravaria enfurecida (era o mesmo argumento dos velhos senhores que não queriam o fim da escravidão). E quem for identificado como ameaça, dança. É a lei do cão.
Mas tudo isso é aparência, claro. Sabemos que a modernidade chegou ao Brasil e ninguém deve ser tão pessimista. E que o privilégio ampliou seu espectro. Hoje, um segurança pode comprar um EcoSport. Isso é sinal que o atual governo inclui as massas desfavorecidas na sociedade de classes. Não é uma contradição? No lugar de eliminar as diferenças, o governo inclui mais gente no sistema de privilégios. Em conseqüência a repressão, como nos prova os shoppings, continua intacta.
Qual a solução? Distribuir renda e não aprofundar o endividamento das classes menos favorecidas. Em O Abolicionismo, Nabuco nos fala de uma lei de “apoio à lavoura” de 1875 que transformava a propriedade escrava em papéis especulativos (letras) para circularem na Europa. Idêntico aos famosos créditos podres que provocou a atual crise financeira. Ah, esqueci. A crise “acabou”. Então, tá, conta outra.
RETORNO - Imagem desta edição: quadro de Debret mostrando o açoite de feitor em escravo na Praça XV, no Rio.
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