Marcus Accioly usa todos os disfarces para plantar a poesia exasperada diante da eternidade que se manifesta na limitação humana (*)
Nei Duclós
Não é no soneto, mais de duzentos, do seu novo livro, Daguerreótipos (Escrituras, 222 páginas) que se situa a poesia de Marcus Accioly. Nem nos seus personagens malditos, de Lennon a Homero, de Maiakóvsky a Sylvia Plath, de Souza Cruz a Keats, que povoam esta obra, assustadora em todos os sentidos. Nem mesmo no Mal e na Dor, destino manifesto do gênio, segundo a sucessão de suicídios, enforcamentos, cortes, sangue e morte que impregnam os poemas. Tampouco na erudição, admirável, do poeta que dialoga em versos com os grande autores e no posfácio explica as fontes do seu ambicioso livro, citando os Mestres da linguagem, de Santo Agostinho a John Milton.
Sua poesia usa todas essas máscaras não para se esconder, mas porque o desespero de toda poesia é utilizar os instrumentos mais eficazes para se revelar. O excesso da dose aponta para o disfarce. Marcus Accioly procura contrapor seu vasto conhecimento às camisas de força de sua biografia, a de poeta pernambucano da geração de 65 saudado pelos maiores escritores da língua. “Daguerreótipos” prescinde do estro, do cânone, mesmo que dele se alimente. Usa o soneto como andaime para um edifício sem utilidade, idêntica à estrutura absurda do filme Oito e Meio, em que um Mastroiani/Fellini fugia das perguntas enquanto distraía a atenção geral com uma torre que enfim não servia para nada.
A poesia de Accioly usa de todos os ardis: a clonagem, a citação, a releitura, o resgate, o remorso, a maldição. Intensifica o tráfego entre a palavra e a sugestão, entre o verbo e a tempestade, entre a Queda e salvação. Prega as tábuas do seu edifício com rimas sólidas, com sintonias de música de câmara, com apelos de sinfonias, com ritmos complexos ou redundantes (a repetição de palavras funcionam como a percussão de perfis colhidos pelo sofrimento). Enrodilhado no verso, que cai em si como gotas de chuva numa paisagem de tambores expostos, ele encarna a imagem que os grandes criadores fazem de si e assume um narrador que é a verbalização desse encontro sobrenatural: “Ó Emily Brontë, sou Heathcliff/ e serás, para sempre, Catarina:/ amor que leva o coração à ruína/ amor que eu não pensava que existisse”.
Isso dá grande eloqüência aos poemas, que exibem uma exuberância de teatro grego clássico, em que as invocações trabalham as tragédias traduzidas pelo talento. Ao mesmo tempo, foge do artificialismo com que o soneto foi encarado por muito tempo, até ser recuperado pelos próprios modernistas e ter chegado até hoje com uma performance admirável, como comprovam obras como “A Imitação do Amanhecer”, de Bruno Tolentino. Em Accioly, o soneto é o elevador que aproxima a luz do abismo, a morte da redenção, a loucura da lucidez.
O poeta não precisa das leituras que faz, da linhagem a qual pertence, das origens ou de suas vitórias. O poeta nada possui e por isso é livre para tecer o canto como o lugar comum (de todos) que não existe a não ser como arrebatamento provocado pelo domínio absoluto da linguagem. Emociona em Accioly sua brasilidade, natureza morta em outras paragens, já que a soberania do país entrou em profunda depressão. Aqui, ela existe porque assim decide o poema, quando vibra: “Tu, Augusto dos Anjos e Demônios/ aos miasmas da noite, em teu Pau-Darco/ como um batráquio dentro do seu charco,/ gastas a multidão dos teus neurônios”.
Mas essa nacionalidade não se amarra à pobreza das consciências datadas. Antes, procura sintonias de extrema contundência: “Tu, que foste feroz (ele foi bravo)/ tu (dele dizem mercador de escravo)/ que a escravidão rompeste a gritos (salve):/ pois tu és o Brasil (ele é a França)/ pois é ele o destino (és a esperança)/ porque ele é Rimbaud e és Castro Alves!” Accioly sabe que o poema é o exagero e não teme ser confundindo com a hipérbole, ele que recupera a solenidade, hoje enterrada pela linguagem em ruínas. Trata-se de uma voz grandiosa sem ser grandiloqüente, uma presença poderosa numa nação que se tornou mesquinha.
Seus sonetos encontram na precocidade da maioria dos personagens essa fúria insana que não se adapta à mediocridade e se consome num cosmo frio que só pode se revelar totalmente pela morte, procurada com paixão pelos incendiários de um verbo estelar, que verte de fontes misteriosas: “Pois, quando um carroceiro a cada estalo/ do seu chicote os lombos de um cavalo/ dilacerava com vergões do mal/ tu, - são do instinto e da razão doente- / choraste, Nietsche, convulsivamente/ abraçado ao pescoço do animal”.
O esforço que Accioly faz para entender o Mal, aceitá-lo, detectá-lo, não resiste à sua vocação solar, denunciada pela música aberta e redonda dos poemas. As labaredas da perdição não fazem parte da sua paciente urdidura poética, que prescinde de suas admirações mais chegadas. A prova são os sonetos, gloriosos porque perfeitos, belos porque chegam ao destino sem se perder nas armadilhas do percurso e reveladores de algo que é anterior à maldição: o talento infinito de quem produziu a Arte e a Beleza sem se socorrer do verniz literário, das mentiras históricas ou da fuga ao que realmente importa, a de que somos criaturas mortais, mas nem por isso submissas à brevidade física.
O poeta é o anjo que ganha a parada, pois enxerga a violência de estar vivo e encara a brutalidade de ser eterno. Sua poesia está em nenhum lugar, a não ser nessa “sobra”, quando se desbastam todos os disfarces e ressurge, crua, a loucura do talento pousado nas costuras aparentemente efêmeras. Como no poema para Tchaikovsky: “O inferno atrai e queima a mariposa/ e uma asa de seda – um véu de esposa – /cobriria o teu rosto, além do pranto”.
Isso pode soar estranho quando estamos à mercê da superficialidade cultural produzida industrialmente. Mas se nos colocarmos na maré alta das transformações que hoje varrem o mundo, podemos notar, num escriba veterano, aquela transcendência arrebatadora das profecias, quando os povos eram lembrados do pó a que pertenciam. A poesia que invade a praça cheia despertando a emoção morta é a luz que contém o mundo num pequeno grão. Neste caso, num livro soberbo.
RETORNO - 1. (*) Ensaio publicado neste sábado, dia 3 de janeiro de 2009, na capa do caderno Cultura, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Marcus Accioly. 3. Esta é a quarta edição do Diário da Fonte em 24 horas: um texto sobre hardnews, a cobertura sobre o falecimento do poeta Oliveira Silveira, um ensaio sobre o filme de Alain Resnais, "O Ano passado em Marienbad" e um ensaio literário sobre o livro "Daguerreótipos", de Marcus Accioly. O DF é um jornal completo. Como disse uma vez Dom Hélder Câmara, no final dos anos 70, véspera da anistia: "Não é hora de descansar". Longa vida ao jornalismo de combate e ao exercício compulsivo do texto. E viva Oliveira Silveira, poeta que nos deixa a semente de uma vida de muita luta!
Nei Duclós
Não é no soneto, mais de duzentos, do seu novo livro, Daguerreótipos (Escrituras, 222 páginas) que se situa a poesia de Marcus Accioly. Nem nos seus personagens malditos, de Lennon a Homero, de Maiakóvsky a Sylvia Plath, de Souza Cruz a Keats, que povoam esta obra, assustadora em todos os sentidos. Nem mesmo no Mal e na Dor, destino manifesto do gênio, segundo a sucessão de suicídios, enforcamentos, cortes, sangue e morte que impregnam os poemas. Tampouco na erudição, admirável, do poeta que dialoga em versos com os grande autores e no posfácio explica as fontes do seu ambicioso livro, citando os Mestres da linguagem, de Santo Agostinho a John Milton.
Sua poesia usa todas essas máscaras não para se esconder, mas porque o desespero de toda poesia é utilizar os instrumentos mais eficazes para se revelar. O excesso da dose aponta para o disfarce. Marcus Accioly procura contrapor seu vasto conhecimento às camisas de força de sua biografia, a de poeta pernambucano da geração de 65 saudado pelos maiores escritores da língua. “Daguerreótipos” prescinde do estro, do cânone, mesmo que dele se alimente. Usa o soneto como andaime para um edifício sem utilidade, idêntica à estrutura absurda do filme Oito e Meio, em que um Mastroiani/Fellini fugia das perguntas enquanto distraía a atenção geral com uma torre que enfim não servia para nada.
A poesia de Accioly usa de todos os ardis: a clonagem, a citação, a releitura, o resgate, o remorso, a maldição. Intensifica o tráfego entre a palavra e a sugestão, entre o verbo e a tempestade, entre a Queda e salvação. Prega as tábuas do seu edifício com rimas sólidas, com sintonias de música de câmara, com apelos de sinfonias, com ritmos complexos ou redundantes (a repetição de palavras funcionam como a percussão de perfis colhidos pelo sofrimento). Enrodilhado no verso, que cai em si como gotas de chuva numa paisagem de tambores expostos, ele encarna a imagem que os grandes criadores fazem de si e assume um narrador que é a verbalização desse encontro sobrenatural: “Ó Emily Brontë, sou Heathcliff/ e serás, para sempre, Catarina:/ amor que leva o coração à ruína/ amor que eu não pensava que existisse”.
Isso dá grande eloqüência aos poemas, que exibem uma exuberância de teatro grego clássico, em que as invocações trabalham as tragédias traduzidas pelo talento. Ao mesmo tempo, foge do artificialismo com que o soneto foi encarado por muito tempo, até ser recuperado pelos próprios modernistas e ter chegado até hoje com uma performance admirável, como comprovam obras como “A Imitação do Amanhecer”, de Bruno Tolentino. Em Accioly, o soneto é o elevador que aproxima a luz do abismo, a morte da redenção, a loucura da lucidez.
O poeta não precisa das leituras que faz, da linhagem a qual pertence, das origens ou de suas vitórias. O poeta nada possui e por isso é livre para tecer o canto como o lugar comum (de todos) que não existe a não ser como arrebatamento provocado pelo domínio absoluto da linguagem. Emociona em Accioly sua brasilidade, natureza morta em outras paragens, já que a soberania do país entrou em profunda depressão. Aqui, ela existe porque assim decide o poema, quando vibra: “Tu, Augusto dos Anjos e Demônios/ aos miasmas da noite, em teu Pau-Darco/ como um batráquio dentro do seu charco,/ gastas a multidão dos teus neurônios”.
Mas essa nacionalidade não se amarra à pobreza das consciências datadas. Antes, procura sintonias de extrema contundência: “Tu, que foste feroz (ele foi bravo)/ tu (dele dizem mercador de escravo)/ que a escravidão rompeste a gritos (salve):/ pois tu és o Brasil (ele é a França)/ pois é ele o destino (és a esperança)/ porque ele é Rimbaud e és Castro Alves!” Accioly sabe que o poema é o exagero e não teme ser confundindo com a hipérbole, ele que recupera a solenidade, hoje enterrada pela linguagem em ruínas. Trata-se de uma voz grandiosa sem ser grandiloqüente, uma presença poderosa numa nação que se tornou mesquinha.
Seus sonetos encontram na precocidade da maioria dos personagens essa fúria insana que não se adapta à mediocridade e se consome num cosmo frio que só pode se revelar totalmente pela morte, procurada com paixão pelos incendiários de um verbo estelar, que verte de fontes misteriosas: “Pois, quando um carroceiro a cada estalo/ do seu chicote os lombos de um cavalo/ dilacerava com vergões do mal/ tu, - são do instinto e da razão doente- / choraste, Nietsche, convulsivamente/ abraçado ao pescoço do animal”.
O esforço que Accioly faz para entender o Mal, aceitá-lo, detectá-lo, não resiste à sua vocação solar, denunciada pela música aberta e redonda dos poemas. As labaredas da perdição não fazem parte da sua paciente urdidura poética, que prescinde de suas admirações mais chegadas. A prova são os sonetos, gloriosos porque perfeitos, belos porque chegam ao destino sem se perder nas armadilhas do percurso e reveladores de algo que é anterior à maldição: o talento infinito de quem produziu a Arte e a Beleza sem se socorrer do verniz literário, das mentiras históricas ou da fuga ao que realmente importa, a de que somos criaturas mortais, mas nem por isso submissas à brevidade física.
O poeta é o anjo que ganha a parada, pois enxerga a violência de estar vivo e encara a brutalidade de ser eterno. Sua poesia está em nenhum lugar, a não ser nessa “sobra”, quando se desbastam todos os disfarces e ressurge, crua, a loucura do talento pousado nas costuras aparentemente efêmeras. Como no poema para Tchaikovsky: “O inferno atrai e queima a mariposa/ e uma asa de seda – um véu de esposa – /cobriria o teu rosto, além do pranto”.
Isso pode soar estranho quando estamos à mercê da superficialidade cultural produzida industrialmente. Mas se nos colocarmos na maré alta das transformações que hoje varrem o mundo, podemos notar, num escriba veterano, aquela transcendência arrebatadora das profecias, quando os povos eram lembrados do pó a que pertenciam. A poesia que invade a praça cheia despertando a emoção morta é a luz que contém o mundo num pequeno grão. Neste caso, num livro soberbo.
RETORNO - 1. (*) Ensaio publicado neste sábado, dia 3 de janeiro de 2009, na capa do caderno Cultura, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Marcus Accioly. 3. Esta é a quarta edição do Diário da Fonte em 24 horas: um texto sobre hardnews, a cobertura sobre o falecimento do poeta Oliveira Silveira, um ensaio sobre o filme de Alain Resnais, "O Ano passado em Marienbad" e um ensaio literário sobre o livro "Daguerreótipos", de Marcus Accioly. O DF é um jornal completo. Como disse uma vez Dom Hélder Câmara, no final dos anos 70, véspera da anistia: "Não é hora de descansar". Longa vida ao jornalismo de combate e ao exercício compulsivo do texto. E viva Oliveira Silveira, poeta que nos deixa a semente de uma vida de muita luta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário