8 de setembro de 2007

MITO HISTÓRICO: SOBREVIVÊNCIA E DEBOCHE

O Fantástico prepara um quadro sobre História, baseado nas pesquisas do Eduardo Bueno e apresentado pelo Pedro Bial, informa a Folha de S. Paulo. Parece que a diarréia intestinal de Dom Pedro I será um dos focos no capítulo sobre a Independência. Vi uma cena cômica sobre esse detalhe num show do Ary Toledo, nos anos 60. Na época, Toledo se insurgia contra as patriotadas da ditadura, que queria colocar goela abaixo uma mitologia e ao mesmo tempo impedir que se conhecesse a História do país. O quadro do Fantástico, ao dar destaque ao fato, servirá apenas para completar o trabalho de demolição da auto-estima nacional.

A mitologia faz parte da identidade da nação e está ou deveria estar a serviço da nossa sobrevivência. Mas como não há mais soberania, é importante penetrar ainda mais fundo nas mentes e devorar o que resta de nacionalidade. Se você desconstrói o mito, que por si só, depois de tanto abandono, já está destruído, o que vem em seu lugar, o deboche? Deveria vir a informação segura, o trabalho de pesquisa sério, a exposição de contextos e assim fazer justiça aos tempos passados e seus protagonistas. Se você diz que o Brasil ficou independente porque Dom Pedro estava cagando, então você não está sendo sério.

Mas vamos esperar a série para ver até onde vai. Por enquanto, temos apenas as matérias de divulgação, que já nos dão subsídios sobre o que vai rolar. Uma das “denúncias” programadas é que o quadro do Pedro Américo, em que Dom Pedro levanta a espada diante da tropa, foi desenhado 66 anos depois. Ou seja, é uma cena falsa. Verdade. Cena real é o trotoir na calçada em pleno horário nobre, a prostituição sendo aceita, estimulada e entronizada sob a capa da denúncia, enquanto não passa de pura reiteração dos papéis sociais (um povo sem soberania está disponível na calçada).

Um dos pecados do quadro “É muita história” é fundar-se na curiosidades. O que tem de relevante a indisposição intestinal de Dom Pedro? É para ser pop, diz o autor dos textos da série. Pop é a manifestação massiva de narizes de palhaço nos desfiles deste sete de setembro. Dom Pedro I teve a coragem de romper com seu próprio país e arriscou a vida. Uma cena empolgante é sua incursão em Minas Gerais, logo depois da Independência, como nos conta R. Walsh, um inglês que escreveu “Notícias do Brasil” no final dos anos 20 do século 19. Dom Pedro estava sozinho, a cavalo, indo pela trilha e foi encontrado por um bando de insurretos, pessoas que queriam derrubá-lo. Estes, ficaram impressionados com a coragem do Imperador e passaram a apoiá-lo. Isso vai ser divulgado?

Uma coisa que a ignorância bem nutrida da falsa intelectualidade não entende é que o mito histórico é tão legítimo quanto as narrações literárias, quanto as memórias, os vestígios, as ruínas. Tudo compõe um conjunto de pistas sobre a construção coletiva de um país. Os mitos históricos são de procedência popular. Quem consagrou a mitologia nos anais dos poderes se baseou na vivência da população, que lutou em Guararapes e Jenipapo, que entrou triunfalmente em Salvador no dia dois de julho de 1823.

Isso marcou fundo o povo que é patriota pois sabe que o Brasil é a única chance de se manter vivo. Os bem postos estão se lixando para o país, pois já pediram dupla nacionalidade e estão com o dinheiro depositado em banco estrangeiro. Quem nada possui, cabe na pequena parte deste latifúndio, exatamente o sentimento de pertença. Querer subverter isso ou tentar desmistificar pura e simplesmente para, aparentemente, gerar revelações, insights, desalienação, não sabe no que está mexendo.

Não se trata de fechar os olhos para os crimes da História. Dom Pedro surrou a própria esposa diante da concubina e isso causou a morte da Imperatriz, que estava grávida. Existe crime hediondo maior? O povo ficou furioso com esse fato na época em que ele aconteceu e saiu às ruas para apoiar a soberana. Dom Pedro aos poucos caiu em desgraça, mas o mérito de ter feito a Independência não lhe pode ser tirado. Além disso, como cansamos de repetir, a Independência não foi apenas o Grito, mas uma guerra de verdade, que durou três anos.

RETORNO - Eu ia escrever hoje sobre “O mesmo amor, a mesma chuva”, desse incrível Juan José Campanella, com esse ator soberbo que é Ricardo Darín, mas o quadro do Fantástico me atropelou. Os argentinos tiveram a coragem de encarar os fatos recentes, não se iludiram de que derrubaram uma ditadura e ficaram livres. Não, enfrentaram os presidentes eleitos, Alfonsin, Menem, a ditadura financeira e civil. E não perdoaram os algozes da ditadura. No lugar de fazer gracinhas históricas, peitaram os poderes que tiveram continuidade com a democracia. Eis a diferença. Aqui, calamos sobre a opressão e tentamos nos compensar falando mal de Dom Pedro I.

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