16 de setembro de 2007

ALEMANHA, A EXTRAORDINÁRIA



Releio a parte de Feurbach de “A ideologia alemã”, de Marx e Engels, uma pedra de cal no idealismo e o livro fundador, no mínimo, de toda História moderna. É um texto lapidar, de uma clareza emocionante. Quanto mais avançamos nas ciências humanas, mais Karl Marx e Friederich Engels se transformam no puro diamante da revolução do conhecimento. É simples assim: “A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo de vida real”. Portanto, a consciência não existe no céu para descer à terra, como querem os idealistas, é o contrário.

Isso serve para desmascarar a atual indústria do aconselhamento. Não adianta cobrar dos incautos para dar conselhos idealistas, pois para que as vidas mudem é preciso que a produção de vida, concreta, se transforme. Se você reúne os funcionários (ou colaboradores, como quer o idealismo vigente) para dizer que eles podem tudo, desde que coloquem algumas palavras de ordem na cabeça, a tal atitude, estará mentindo.

Se não houver mudança nas forças produtivas¸ se a massa não sair da situação de vendedores da mais-valia (aquele plus de trabalho capturado pelo patronato), então kaputt. Pode ficar falando à vontade, eles serão sempre os mesmos, pois pensam conforme as relações de produção que os dominam, da mesma forma que seus chefes jamais vão abrir mão de seus objetivos e interesses. O resto é conversa para boi dormir.

Para efeitos deste texto, sobre “O milagre de Berna” (Das Wunder von Bern), o maravilhoso filme de Sönke Wortmann (2003), podemos dizer, sob as luzes dos alemães Marx e Engels, que a vida concreta constrói o imaginário de uma nação. Em 1954, ano em que se desenrola a história do filme, o que era essa vida concreta? Um país pobre, destruído, com famílias partidas pela guerra ainda presente, apesar de ter acabado dez anos antes. O que fez essa nação, que, como todas as outras, não existe fora dos seres reais? O que fizeram os alemães, segundo Wortmann (que é também co-autor do roteiro; o outro roteirista é Rochus Hahn)?

Uma leitura superficial dirá que ganharam pela primeira vez a Copa do Mundo, tiraram o caneco das mãos certas da Hungria, que havia quatro anos e meio não perdia um só jogo e que tinha dado um vareio de oito a três na mesma competição, disputada na Suíça. Fizeram mais do que isso. Se reconciliaram com os ex-combatentes que estavam prisioneiros na Rússia. Se concentraram na estratégia vencedora de cidadãos pacíficos e religiosos, que procuraram meios de sobrevivência real e se superaram.

A vitória na Copa foi apenas o resultado desse esforço coletivo, que mais tarde resultou na queda do muro de Berlim e na reunificação. Na reconstrução, houve, claro, a mão do imperialismo americano, mas bilhões de dólares despejados num buraco negro resultariam em nada. É no coração nacional que foi engendrada a saída e essa essência é a vida concreta dos seres conscientes pertencentes a uma mesma comunidade.

Por que a Alemanha é assim? Certamente não é pelo sangue, pela eugenia racial, pois isso seria nos rendermos ao idealismo. Precisamos da dialética marxista para entender. Uma pista é dada pelo filme. Perdemos de oito a três, urravam todos, contra o técnico da seleção, que permanecia firme. Fizemos três gols nos deuses, replicava ele. São vulneráveis, têm fraquezas, vamos aproveitá-las. O grande estrategista puxou de dentro de cada jogador a vontade de vencer, demoliu brigas internas e concentrou o jogo nas possibilidades de vitória. Deu certo.

A família que recebe de volta o ex-soldado que ficou onze anos preso na Rússia dá também uma lição de grandeza. O sujeito chega cheio de fumaças, ressentido, morto socialmente e começa a aprontar. É a reação familiar, a necessidade de união para a sobrevivência de todos, o perdão, a tolerância e a firmeza que fazem a diferença. É a solução concreta, a montagem de um negócio, sem esperar a anunciada indenização do governo, que mantém a família junta. É na escassez que se encontra a saída. É a determinação, a mudança das relações pessoais com os meios de sobrevivência que os salva. É o que opera o milagre.

Uma das cenas mais geniais deste filme magnífico é o cruzamento entre a narrativa real do jogo da Copa e a pelada dos garotos alemães disputando a bola na rua. Mas tem muito mais: os atores realmente dominam a bola, são jogadores de futebol. E jogam conforme o estilo antigo, numa paciente recomposição dos principais lances. Nós, que ganhamos a copa de 1958, num feito ainda mais memorável, jamais produzimos algo semelhante. Chegamos no máximo a esse execrável filme sobre o Garrincha em que o ator principal é um perna de pau!

Além de destruir Garrincha, colocaram alguém não familiarizado com a bola para interpretar nosso gênio do futebol. Tenham dó. Mirem-se no exemplo da Alemanha, e notem o que faz dela uma nação extraordinária.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "O milagre de Berna".

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