23 de julho de 2007

O VÔO DA CHINA IMPERIAL


A China sempre foi uma ditadura, desde as antigas dinastias, passando pelo poder absoluto do comunismo de Mao e desaguando no atual regime dos mandarins globais. A China infesta o mundo de quinquilharias enquanto vendem uma auto-imagem de nobreza eugênica poderosa, especialmente no cinema. A partir de "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee, em que os guerreiros voam, o cinema chinês saiu, pela mão do cineasta Zhang Yimou, do seu humanismo memorialista (Lanternas Vermelhas), socialista (Nenhum a menos) e partiu para o superespetáculo da auto-estima imperial.

Herói, O Clã das Adagas Voadoras e A Maldição da Flor Dourada são o que a China quer de nós. São filmes que seqüestram nossa percepção para o poder absoluto da nação que quer dominar o mundo. Para isso, se serve do talento dos seus cineastas e a parceria com seus asseclas americanos (o entusiasmo do bastardo Tarantino pelas artes marciais é típica). Invadem a mente mundial com o perfil de um país coeso, que emana de uma única fonte de poder: sua História, vendida como absoluta, quando não passa de uma representação comercial. Brilhante, assombrosa, exatamente por isso, pelos seus objetivos inconfessáveis.

A China não se mistura, se alia para tomar conta de mentes e mercados. Você vê alguém não chinês num filme chinês? Não estou falando dos filmes de Hong Kong ou Taiwan, mas esses promovidos pela China Imperial. Os desertos intermináveis, as florestas imaginárias, as multidões de soldados com suas bandeiras coloridas esvoaçantes (herança de Kurosawa em Ran) , os megafilmes de Yimou são uma colagem de grandes cineastas (especialmente as inúmeras versões dos mesmos eventos, como em Rashomon, também de Kurosawa). É preciso que haja muitas camadas narrativas para que não se descubra o núcleo, que está vazio.

Um vazio preenchido pelos vestidos vermelhos entre folhas outonais douradas ou pulos estéticos sobre lagos em Herói, pelo sangue sobre a neve ou pela impressionante seqüência da luta no bambuzal em Adagas Voadoras. É isso que Yimou espera que fique retido na retina dos espectadores, conforme confessa no making of. Seu álibi é o cenário, mas seu crime é justificar a expansão chinesa pelos quatro cantos do mundo. O recado é direto: uma nação una, única, não contaminada (eugênica), poderosa, com mais tempo de História que qualquer outra, merece mandar no mundo.

Mas Zhang Yimou, cineasta de primeira grandeza, autor de inúmeras obras-primas, continua sua trajetória com O longo Caminho ou Happy Days. O fôlego monstruoso do seu cinema é um feito pessoal, individual e não pode ter seu crédito repassado para o mando imperial da nação chinesa. Ele se prestou ao serviço, mas não interrompeu sua trajetória de encantar o mundo com o poder de suas imagens. Pudera Yimou ficar no que chamam drama e jamais ter partido para o que chamam de ação. Mas há ação em seus filmes pessoais e dramáticos, e drama demais em seus filmes de ação.

Dividir o cinema em gêneros é sinal de pobreza teórica, impunemente repetida desde os chefões de Hollywood até a prateleira da locadora de dvds. Sumiu, por exemplo, o gênero policial, o mais clássico de todos. Você tem o suspense, que se confunde com terror, mas não tem mais o bom e velho policial. Talvez porque os crimes não sejam mais localizados e não haja mais anti-heróis que, no fundo, são personagens éticos, como os detetives durões. A brutalidade tomou conta do mundo e uma das formas de mascará-la é transcender a invasão com um show de cores e formas nas telas.


A China coloca na roda o sonho que devemos ter com ela. A China mesmo não tem essa auto-imagem. O que conta é o que eles querem repassar: um imaginário triunfante, que mistura Shakespeare, blockbuster e Kurosawa, numa maçaroca pós poderna de tirar o fôlego dos espectadores e de confundir as crítica. Não podemos simplesmente malhar Yimou ou ignorá-lo. O lance foi perfeito: pegaram o melhor para nos seduzir. Mas nós, prisioneiros do país continental, sabemos de cór esse tipo de manha. Quem deveria voar somos nós, os inventores do avião a partir das lições da natureza. E não os chineses, que navegam bambus como se estivessem na casa da sogra.

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