19 de julho de 2007

A LÓGICA PERVERSA




Estar sempre com a razão, mesmo que os fatos contrariem as opiniões mais contundentes (que deveriam ser jogadas no lixo imediatamente depois que forem desmoralizadas), é fruto da lógica perversa que tudo concede a assinaturas notórias da mídia impressa e virtual. Para dar certo, é preciso que essa lógica perversa faça parte de um truque vistoso: muda-se o foco dos fatos para o território denso do consenso pretensamente racional. Mas, cuidado: essa mutação precisa de respiradouros, pois é fácil para o leitor compreender que está sendo vítima de uma rasteira, então ele precisa ser distraído com algumas firulas que adquirem credibilidade pela repetição.

Na política econômica vimos como os sucessivos planos, e agora o atual arrocho, foram e são considerados algo irreversível. Só os tontos não entendem que não há saída, não há salvação fora da dependência absoluta. Como são elegantes os textos de economia, em que a lógica perversa nos carrega para o terreno virtual do raciocínio imbatível, onde a conexão entre eventos absurdos ganham status de maioridade mental. Por exemplo: precisamos exportar proteínas para conseguirmos dólares, que serão pagos (ou devolvidos) nos juros da dívida externa. Esse dólar consignado chama-se divisas. Para a carência interna de proteínas, faça-se planos emergenciais de esmolas.

Como a brutalidade dessa política cerca o país por todos os lados, é preciso acenar com algumas lantejoulas do maucaratismo com ares de erudição. “Círculo virtuoso”, por exemplo, eis uma boa firula que serve para dourar a pílula. Existem também tiradas bem nutridas como “não existe almoço grátis”, brandida como verdade absoluta e que faz parte da tautologia imperante, a mesma que entronizou máximas como “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”.

No futebol temos vítimas de sobra da lógica perversa. A seleção brasileira, por exemplo, está sempre errada. É preciso que jogadores não consensuais, como Maicon, Juan, Julio Batista, Josué, Doni, ou seja, quase todo o time, fique fora. O que deve entrar seria uma espécie de memória seletiva de vitórias anteriores, algo como o futebol arte com eficiência do futebol força, uma hidra que misture Didi com algum Ronaldo. O técnico está sempre errado. O Luxemburgo é burro, o Dunga é tosco, o Felipão é bruto, o Zagalo é prepotente. Só o analista é civilizado, fino, clarividente, eficiente.

Como os sucessivos títulos da seleção brasileira acabam desmentindo tamanha má-vontade embalada em crítica da razão pura, é preciso que o território virtual da lógica perversa se encha de engrenagens mirabolantes, incontestáveis. Ser prudente é jogar na retranca é uma delas. Ganhar da Argentina na final é puro resultado do contra-ataque é outra. Ou: os volantes só servem para dar pontapés. Mas quando vemos esses virtuoses violinistas do futebol total que são os argentinos caírem feito um saco de batatas diante da superioridade da cultura acumulada do futebol brasileiro, é preciso que a lógica perversa invente alguns respiradouros.

Um deles são os famosos deuses dos estádios. É incrível que pessoas tão racionais invoquem deuses pagãos inventados. Como se a seleção brasileira fosse manipulada por entidades fantasmagóricas, gigantescas, que decidem resultados e isso livraria a cara dos que sempre erram, mas sempre querem estar com a razão. Teve gente que disse, antes da final, que se o Brasil ganhasse a Copa América, então esse evento estaria desmoralizado. Ou seja, a realidade é uma coisa incômoda para a lógica perversa, que apesar de ser contrariada todos os dias, continua firme, impune, imponente.

O importante é colorir o lugar-comum das idéias com a vestimenta invisível de uma credibilidade que há muito foi para o ralo. Uma das cores mais intensas é o pensamento politicamente correto. Como existe corrupção na cartolagem e nos negócios do futebol, então a seleção canarinho é suspeita. Mas se argumentarmos que se o Trotski fosse o técnico, e recebesse um não de Kaká ou Kuku, ele convocaria o time que foi para a Venezuela, isso seria encarado como algo fora de propósito. Pessoas íntegras não admitem que a CBF também pega carona numa criatura chamada futebol pentacampeão do mundo, fruto de décadas de esforço de uma nação que sonha com sua soberania plena.

Mas não defenda essas coisas por aí. Será olhado de maneira torta. O dólar despenca por excesso de oferta no país que remunera a especulação da pirataria internacional. Contra isso não há remédio. Agora vêm as eliminatórias, da Copa. A Argentina, enfrentando times inferiores, vai brilhar no início. Vai ser um deus-nos-acuda. Que craques, que coisa! Vejam o Tevez, dando uma saraivada de pontapés enquanto morde a língua a exemplo dos loucos da Idade Média. Que portento, que talento. E como somos decadentes com nossos Maicon, Julio Batista, Juan. Como estamos sempre errados diante da lógica perversa que, como a política econômica que entrega o país, não dá mostras de querer tirar o time de campo. Será preciso expulsá-las?

RETORNO - Imagem de hoje: Rescaldo, de Helcio Toth. 2. Este texto foi publicado na seção Literario do Comunique-se.

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