Nei Duclós
Não importa, para o cinema, os princípios, o altruísmo, a fé,
a consciência. Esse não é o foco. Os filmes se perdem na difusão da moral, da
cidadania, da coerência, quando deveriam cuidar de sua própria natureza, o
cinema, já que a Sétima Arte é limitada por si mesma e essa é a sua
transcendência. Um filme não é a Bíblia, o Alcorão ou a Declaração dos Direitos
Humanos. Nem uma cartilha de autoajuda ou uma lição de vida. Um filme é o que o
cinema faz dele. E o que faz o cinema de
Nuri Bilge Ceylan em Winter Sleep (Sono de Inverno, 2014) vencedor da Palma de
Ouro de Cannes deste ano? Para desvestir
a obra das boas intenções, ele mostra como a interferência inútil nos fatos que
se resolvem por si é apenas uma forma de distorcer o que realmente importa, que
é agir focado numa vida plena.
Ele molda sua obra vencedora na interpretação dos diálogos
de um ex-ator com seu entorno, que são os turistas desenraizados do seu hotel,
os inquilinos miseráveis de suas inúmeras casas, a jovem esposa frustrada que usa
os programas sociais para criar um mundo à parte, a irmã amarga e divorciada
que o contesta o tempo todo, o fiel subalterno que assume a carga pesada do
gerenciamento dos negócios , os vizinhos que ele visita e despreza e os
habitantes da aldeia que ele enxerga como suspeitos de traições e ambição. Há uma intensidade de Bergman neste filme,
onde a ruptura se aprofunda sem esperança de reconciliação, pois os personagens
se debatem com um problema capital: é preciso interferir no destino ou deixar
que ele se cumpra?
É um falso dilema. Pois aos tentarem interferir na miséria,
na injustiça, nos equívocos sociais, todos deixam de fazer o que deveriam, ou
seja, enfrentar seus próprios demônios, limpar a ação de todo o supérfluo,
desvestir-se das ilusões e armadilhas, e deixar-se levar pelo que é inevitável
e se soluciona por si só. Essa postura impará a trilha para o verdadeiro
assunto: o de fazer algo que realmente importa. No caso do ex-ator empresário,
cuidar do seu casamento e escrever enfim o livro sobre o teatro turco, tema que
ele pesquisa há anos e nunca começa o texto final. Às mulheres, cabe perdoar os
males sofridos e limpar a rotina para a reconciliação, que está latente nos
cônjuges e não vem à furo pela incompetência masculina prisioneira de ódios e vaidades.
Ou se faz isso ou o ovo da serpente irá crescer. No caso, o
filho rebelde de 11 anos, que quebra vidro de janela de carro, olha feio, não
beija a mão, não se arrepende e quer ser policial no futuro. Os adultos se
preocupam em angariar fundos para as escolas, mas não enxergam o que rola em
suas próprias casas, com a infância espiando a incompetência geral . Não que as
pessoas desviadas para o mal tenham que encontrar o caminho do bem. Mas sim não
opor-se ao mal para não desfigurar-se junto com ele, e contornar as armadilhas
para, com a ajuda do tempo, poder se reencontrar, ver o que existe dentro do
espírito tomado por inúmeras tralhas.
A paisagem tomada pelo inverno rigoroso é a intensificação
da secura interna das pessoas que se perdem fazendo coisas fora de suas
competências. O cavalo que se tenta domar é a natureza humana que exige, pela
sua complexidade, algo mais do que apenas princípios morais. Exige coragem e
reconciliação. A dureza no trato humano gera animais ferozes que se estraçalham
com palavras e parte para brigas de facas, rupturas entre familiares e
vizinhas, prisões, vazio e depressão. A presença de turistas que usam o hotel
da aldeia mostra como as pessoas navegam sem rumo, querendo que as coisas que
exigem interferência – as de foro íntimo - se resolvam por si, quando isso deve
ser deixado para aquilo que no fim toma a maior parte do nosso tempo,
inutilizando vidas inteiras.
Eu já tinha escrito sobre a arte deste grande diretor neste
texto. Desta vez, a viagem é menos prazerosa, mas
igualmente brilhante. Em Anatolia, o fantasma de um ator famoso assombra uma
investigação. Em Winter Sleep, o modelo do ator bem sucedido retorna na foto de
Omar Sharif que ali filmou O Sr. Ibrahim, de 2003. Ser bem sucedido não é o
foco. Cinema não é o que marketing faz dele. Mas o que os artistas compõem
confinados na moldura dos filmes inesquecíveis.
RETORNO – Imagem desta edição: Haluk Bilginer e Demet Akbag
em cena de Winter Sleep.
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