Nei Duclós
O escritor MARCO ROZA me concedeu esta entrevista sobre seu
romance OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM. O impacto da leitura deste livro,
que aborda personagens marcados pela tortura no Brasil, me levou a perguntar as
raízes dessa relação profunda entre o autor e o tema. Entendi a resposta como um aviso: todos estamos envolvidos nesse drama, e não como espectadores.
Fazemos parte dele e só a coragem expressa na literatura pode dar a dimensão
real do estrago feito não apenas no físico, mas no imaginário do país. A
seguir, a entrevista com o autor.
P - Qual a relação
entre tua vida pessoal e o assunto do livro? Por que escolheu o tema da tortura
para teu romance?
R - Tortura, infelizmente, é uma prática universal. A
encontramos em todas as culturas e épocas. Em todas as classes sociais, mas
especialmente como uma prática adotada quase que com naturalidade para
confirmar o que seria desnecessário, ou seja, a superioridade de um grupo sobre
o outro, de uma autoridade policial contra os presos já presos, do homem forte
contra a mulher ou contra a criança, mais fracas. Vivi de perto como criança
muito pobre essa onipresença da tortura através dos espancamentos adotados
arbitrariamente pelos meus pais, pelos adultos nos locais em que eu trabalhava
(comecei com 8 anos a trabalhar como ajudante numa serralheria). Me tornei
adolescente trabalhando como faxineiro na Faculdade de Filosofia e Letras de
Juiz de Fora, da UFJF, e acompanhava as discussões subterrâneas no diretório
acadêmico (que eu limpava) e pude comparar os espancamentos que eu era vítima
com as porradas que os jovens estudantes recebiam quando eram presos. Fui
descobrindo também uma certa indiferença com a tortura e com os espancamentos,
algo que a gente não gosta de lembrar depois que supera o sofrimento e o
constrangimento de ter sido usado, vilipendiado, humilhado e ofendido, e que
faz crescer uma cicatriz inversa, para dentro da gente. Percebi também que o
tema tortura era sempre tratado pelos aspectos mais racionalmente contundentes
o que, acredito, cria uma rejeição imediata nas pessoas, pois é muito difícil
racionalizar a tortura. Por isso, achei que com um pouco mais de poesia e de
transcendência poderia reposicionar o tema tão universal, tão eterno, tão
presente.
P - A estrutura do
livro obedece à simultaneidade narrativa, que pode ser lida tanto,linearmente
quanto salteada. Por que decidiu contar essa história dessa maneira? Há algum
modelo, alguma referência para essa escolha?
R - Minha inspiração direta é "O Jogo da
Amarelinha", de Cortázar. Mas depois de ter lido "O jogo da
Amarelinha" várias vezes, percebi que até mesmo o livro dele poderia ser
lido na ordem que a gente escolhesse, em vez de se submeter às sugestões que
ele faz ao fim de cada capítulo. Daí ter criado um livro que é uma
autoreferência continuada, num loop que associei ao DNA, sempre expandindo, mas
recriando e se recriando a cada leitura. Além disso, minha parcial formação
como Físico (estudei dois anos e nunca mais parei de me dedicar ao tema) Física
na PUC-Rio me ajudou a imaginar o leitor como complemento do livro. Algo óbvio
mas que para arriscar a construir requer uma certa indiferença pelo eventual
acerto e foi isso o que me motivou.
P - Quais tuas preferências literárias? Teus autores favoritos? Eles influenciaram em
Vitrais?
R - Eu sou uma esponja de livros, de ideias, de ouvir
conversas alheias. Busco (talvez pelo vício de um quase cientista que tentei
ser) o algoritmo que emerge das falas, das almas, dos desencontros, das
rotinas, dos conflitos, dos discursos. Me exercito profundamente para não me
perder no Pleroma que nos rodeia e nos ameaça submeter e reduzir a nada, como
descreve Jung em "Sete Sermões aos Mortos". Convivo com romances,
teses científicas, obras espirituais, Candomblé, Umbanda, Virgínia Wolf,
Musashi, Faulkner, Arthur Koestler, Joyce, Balzac, Gorki, Tchekov, Fritjof
Capra, James Gleick, The Interpreter's Bible, Don Quixote, Borges (que faço uma
homenagem no último parágrafo do livro) etc. A lista é imensa.
P - Personagens do livro são criações baseadas em pessoas
reais, ou são pura criação literária?
R - Meu caro qual é a pessoa real que não é ao mesmo tempo,
enquanto vive, uma criação literária dos nossos arquétipos ancestrais? Quem
consegue ou conseguiu escapar?
P - Qual a expectativa que tens em relação à repercussão do
livro neste momento em que se mexe profundamente nos porões da tortura? Qual a
relação que vês entre teu romance e a Comissão da Verdade?
P - Não tenho nenhuma expectativa. As pessoas que foram
vítimas da tortura ou que não mais querem a tortura do Estado tratam o assunto
racionalmente, através da formulação das leis, da busca da legítima Justiça.
Que apoio. Mas a tortura besta, que corrói almas e as misturam com suor,
sangue, vômito e fezes ainda continua aí permanente, no noticiário nosso de
cada dia com as milhares de mulheres espancadas e mortas; com as crianças
espancadas a ponto de preferir morar na rua, onde também são espancadas pelos
adultos e pelos representantes do Estado. Dentro das prisões, a tortura é
adotada pelos carcereiros e pelos próprios presos. Tortura é, como disse,
universal, onipresente. E a adotamos como fosse uma entidade mítica que pelo
que entendo é quase necessária na suas desumanidade exatamente para nos confirmar
humanos. Hasta quando?
P - Há uma carga forte de escatologia nos capítulos do
livro, relacionada com a exposição das vísceras de uma dor política e social
profunda. Como conseguiu dosar esse aspecto rude e pesado com a emoção
transmitida pelas pessoas envolvidas na narração?
R - Me senti absolutamente incapaz de reproduzir os efeitos
emocionais da tortura. Por isso apelei para imagens fortes que arrancassem o
leitor do seu conforto e o envolvesse com a recriação das emoções que pretendia
apontar. As apoiando ou condenando, mas sem deixar a saída honrosa da
indiferença. Daí a escatologia poética, que ao mesmo tempo exala o doce odor
que antecede o cheiro forte e característico dos cadáveres em decomposição.
Tentei uma mistura de Baudelaire e T.S. Eliot. Além disso, é um livro que por
respeitar a importância do leitor e leitora para emergir do papel, não
estabelece nenhum acordo. Não é feito para agradar nem para desagradar. É mais
uma tentativa e uma esperança de expor a brutalidade dessa deusa tortura que
tanto reverenciamos. E que quando reagimos em vez de superá-la e eliminá-la do
nosso sistema, a recriamos em nossos pesadelos e traumas ao legitimar o ato de
tortura como uma punição pelas culpas que não temos.
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dispositivo iOS.
2. O prefácio do livro, de minha autoria, está aqui.