22 de abril de 2012

FULLER NOIR: MULHER É LUZ, HOMEM É SOMBRA


Nei Duclós

Continuo a viagem na força da natureza, o cineasta Samuel Fuller (1912-1997), a enésima potência da energia na Sétima Arte, o autor de inúmeras obras-primas que encantam gerações e que rompeu todos os vícios de linguagem do cinema, criando soluções imitadíssimas até hoje. Sabe o chefe dos bandidos que fica o tempo todo na piscina? O momento dramático em que o anti-herói enfim leva um tiro e se arrasta pela avenidas desertas até morrer num beco? Os jargões como “let´s get out of here” dito para amantes ou comparsas? A tela sendo ocupada inteira pelo olhar oblíquo de alguém que se esgueira? Os letreiros de impacto se superpondo às imagens para costurar a narrativa? São inúmeros os recursos usados por Fuller que se tornaram cânone.

O melhor de Fuller é pré-macartismo, antes que a direita metida a politicamente correta destruísse Hollywood para transformá-la nessa choldra inominável de releases visuais sobre aos mariners, os advogados, o FBI, a CIA, os mercenários fedorentos desprezíveis e os escatológicos porcos de gerações de falsos comediantes. Antes de ver seu assombroso Underworld USA (que é de 1961, mas é um autêntico exemplar do cinema formado antes do massacre direitista dos anos 50) eu achava que Nick Ray tinha mandado bem com Rebel Whithout a Cause, de 1955. Mas só as sequências iniciais sobre delinquência juvenil coloca a juventude transviada de Ray no chinelo. Fuller não tem piedade, não perde tempo com sentimentalismo. Tudo nele é um exagero de talento e competência.

Mas o forte do filme é a aula que dá sobre como funciona a corrupção. É puro Cachoeira. O bandidão que fica na piscina dia e noite (como o Peréio de Lúcio Flavio, de Babenco, 1977) domina os negócios do Estado, paga impostos, faz caridade e explora a juventude como grande mercado para as drogas. manda matar desafetos e informantes. Seu capanga elimina uma criança, a menina que andava de bicicleta numa rua tranquila. Ela era filha de um garganta profunda que entregava tudo sobre propinas aos policiais e por isso foi eliminada para servir de lição, já que o alcaguete estava foragido.  A intercepção de documentos sigilosos é puro wikileaks, se formos usar um anacronismo.

Fuller não é sentimentalóide, mas mata a pau nas cenas de amor. “Tem mulher que chora, se desespera, morde, ameaça, mas eu não. Eu morro por dentro cada vez que você me beija”, diz a mulher (interpretada por Dolores Dorn) que também tem informações secretas sobre a máfia e está fugida e sob a guarda do arrombador de cofres (o carismático Clif Robertson).  “Sabe por que ela é grande?” diz a protetora do ladrãozinho (Beatrice Kay). “Porque viu algo dentro de você que vale a pena salvar".

A feminilidade corajosa que expõe explicitamente sua diferença e se encanta com a virilidade ética, mesmo em casos considerados perdidos, é o casal canônico de Fuller, presente também em Pickup on South Street (1953), já analisado aqui. As cenas de beijo são arrasadoras. Os homens avançam, as mulheres sem entregam, a tela se incendeia. O homem está sempre ligado à sombra: numa cena inspirada nos comics, vê-se apenas a sombra dos assassinos em cima do pai do protagonista, gerando nele a vontade eterna de se vingar. Ele se arrasta por becos, salas escuras, ruas mal iluminadas. A mulher é a luz, a claridade, que aparece no seu caminho numa fresta. Seu rosto é um flash na escuridão. Ela chega para desviá-lo em direção à relação permanente, a solução, a saída para uma vida tão estéril.

Quem resiste a Samuel Fuller, que arrebenta com os paradigmas dos gêneros, os ultrapassa e se transforma em referência absoluta do noir, como neste Underworld USA, do faroeste como Eu matei Jesse James etc.? Ninguém. Sobram livros variados sobre ele por todo o canto. Amado, celebrado, analisado, Samuel Fuller é um criador que funciona como uma bomba atômica no cenário gelado da indústria do espetáculo.


RETORNO -  Imagens desta edição: o assassinato representado por sombras em movimento e a aparição da heroína em Underworld USA.