Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
12 de dezembro de 2009
MACBETH: O DESTINO TRAÍDO PELA PROFECIA
Nei Duclós
O relançamento de MacBeth, de William Shakespeare, com tradução de Manuel Bandeira, pela Cosacnaify, nos permite ler o texto sem a interferência da montagem ou da infindável fortuna crítica que acompanha a obra desde seu lançamento em 1606. O livro solitário, iluminado em cena pela leitura sem vínculo com a mitologia criada em seu entorno, é como um personagem dramático diante dos seus fantasmas. É um documento, aqui tratado como preciosidade (tanto pela lendária obra-prima original quanto pela tradução feita por um dos nossos maiores poetas) desenterrada do tempo e que chegasse até nós como um enigma.
O grande poema épico é limitado, neste pequeno ensaio, pela transposição da língua (mesmo que Bandeira tenha assumido o risco com precisão e elegância) e pela configuração à parte, livre das inúmeras camadas críticas ao longo de quatro séculos. Mas isso, antes de ser um problema, é um passaporte para visitarmos o gênio na essência de sua grandeza, já que está desarmado das artes coadjuvantes que fazem sua glória - cenários, presença física de atores e atrizes fundamentais, direção de mestres do teatro, acompanhamento musical etc. Algumas fotos inseridas no volume retratam as personalidades que navegaram na peça, como Michael Redgrave, Orson Welles, Peter O´Toole, Lawrence Olivier, Vivien Leigh.
De que trata o texto? De uma profecia sobre destinos, no caso, de pessoas que irão assumir a coroa da Escócia. E de como essa profecia foi apunhalada pela ambição. Falando com mais clareza: trata de um herói de guerra, MacBeth, que ao ser plenamente recompensado e reconhecido pelo seu rei, Duncan, resolve apressar o que lhe estava reservado no futuro, o trono. Ao escutar as bruxas lhe dizerem que assumiria o poder, contrariou sua condição de nobre fiel para, em conluio com a esposa, destruir o obstáculo e assim chegar ao lugar para o qual fora predestinado.
A charada começa pela dúvida de que a profecia emitida por entidades subalternas era realmente legítima ou não. Não teria sido uma armação das pitonisas, já que mais tarde foram contestadas por uma entidade superior? Esta, sim, inventou uma predição que levou MacBeth à ruína. Ao vislumbre verdadeiro de que o guerreiro bem sucedido iria, forçosamente, sentar-se um dia no lugar de Duncan, seguiu-se os conselhos sinistros de uma nova caldeirada, que transmitiam a falsa certeza sobre os poderes do tirano. O usurpador do trono, segundo a armação bruxólica, não tinha limites e poderia alcançar todos os seus desígnios sem fazer força.
As cenas dos cinco atos são sínteses da ação que pula todos os detalhes e se circunscreve ao núcleo do drama. A técnica teatral canônica não perde tempo, antes o insere em sucessivas situações que se reportam ao que veio antes e não foi mostrado. Isso economiza espaço-tempo sem desperdiçar a oportunidade de revelar os desdobramentos que circundam os diálogos, como se a realidade fosse uma espiral em que o vórtice é o embate dos protagonistas. Ficamos sabendo o que ocorreu sem que o dramaturgo exponha tudo com todas as letras. Isso serve para focar o principal: o poema, que transcende o jogo de palavras e instaura as contradições que movem as personagens.
O casal MacBeth se considera novato no crime e entra em parafuso depois do regicídio. O novo rei é assombrado pela alucinação dos espectros que o visitam e a rainha entra em processo de loucura pelo remorso subjugado na vigília e hegemônico no sonambulismo. Ao mesmo tempo, os dois são impelidos para o Mal pela lógica da profecia. Se MacBeth será rei, o que o impede de cometer o crime? Seu álibi é que está apenas obedecendo ao desejo das divindades. Quando fica indeciso antes do ato hediondo, é chamado às falas pela mulher, que clama por sua hombridade perdida na dúvida.
O herdeiro legítimo, Malcolm, num diálogo magistral com o nobre MacDuff, pinta-se como a pior das criaturas. Se conseguir ser rei, diz para o amigo atônito, provocará a desgraça da pátria e dos súdidos. É apenas uma armadilha para testar a lealdade do outro, mas a situação absurda de um predestinado que nega suas virtudes é mais uma dissecação da verdadeira natureza de pessoas comuns ungidas pelo destino. Não é a precariedade humana que contestará a legitimidade monárquica, mas a ambição que pode colocar tudo a perder. A humildade do herdeiro que pôs o amigo à prova é garantia de que será um rei justo, já que tem noção exata das diferenças entre o Bem e o Mal.
A esposa de MacDuff, que o renega por ter abandonado a família, sabe que está vivo e por isso não chora. O filho pressente que há algo errado na falta de lágrima e não acredita que o pai esteja morto, como lhe diz a mãe. A lucidez da inocência diante da tragédia é um dos muitos sintomas de que o moralista Shakespeare, por mais que sujasse de sangue as mãos de seus brilhantes personagens, tinha se decidido pelo lado virtuoso das criaturas. O drama ético e em conseqüência, o teatro e por extensão a vida terrena, por mais mergulhada no terror, terá no talento a revelação do que realmente importa quando os princípios parecem ter submergido.
O fascínio que exerce o assassino MacBeth, com suas falas inesquecíveis, diz muito sobre a manipulação das grandes obras entre nós. A maior delas todos conhecem: “A vida é uma sombra ambulante; um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada”. Essa fala terrível é atribuída a Shakespeare, quando todos sabem que é de MacBeth. A diferença, sutil, precisa ser colocada. A vida só não faz sentido para quem mancha as mãos num crime hediondo, levado pela ambição.
De onde vem essa distorção de caráter do guerreiro que acabara de receber todos os elogios e presentes do seu rei? Vem do reconhecimento. Todo mortal aspira ao reconhecimento, que é a extrema unção de sua obra. Há insatisfação permanente, pois o gênio (o mais alto grau de uma atividade) só pode ser reconhecido pelos seus pares ou por quem o transcende. O aplauso subalterno não preenche a desmesurada fome de alguém que atingiu o ápice. É preciso que do alto venha o sinal. E quando ele vem, é porque o ungido atingiu o patamar de quem o eleva. Sem os princípios, sem as virtudes, esse é um processo perigoso, o mesmo que devorou MacBeth.
Sua vocação, a de exímio artífice nas atividades da guerra, desemboca na tirania. Mata seu rei, que o admira. Mata o melhor amigo Banquo, que poderia ser rei. Não vale a pena destruir o adversário se junto com ele destruímos a vontade de viver, reconhece Lady MacBeth no auge do remorso. Mas arrepender-se, nesta trama mortal, não interfere na continuidade das ações voltadas para o Mal. Triunfa, para morrer depois na guerra provocada pelos assassinatos, o voluntarismo de quem traiu o destino ao distorcer a profecia. Ou ao encará-la como mero instrumento do egoísmo.
O enigma principal é saber se a trajetória humana determinada pelo Absoluto pode servir de repasto para o livre arbítrio. No momento em que a vontade se impõe e faz acontecer, ela estaria apenas cumprindo a escrita ou se transformando, por meio da transgressão, numa volúpia, a de desobedecer o sagrado, que até as bruxas adivinham?
RETORNO - Imagens desta edição: além da capa do livro, em destaque, a cena em que Orson Welles faz o papel do trágico MacBeth.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário