24 de dezembro de 2007

O PRESENTE SECRETO


Nei Duclós (*)

Custei a descobrir que o presente de Natal não era o tanque de guerra feito de plástico verde, que disparava luzes e sabia voltar ao bater na parede. Ou o pião de lata que mudava de cor ao toque da mão e emitia um zunido quando deslizava pelo piso. Também não era a árvore artificial, portentosa, com pingentes idênticos ao cristal, cheia de enfeites dourados e uma grande estrela pontificando no alto. E não era o presépio, candente em sua cena de terna imobilidade. Custei ainda mais a perceber que o verdadeiro presente não era despertar na manhã sagrada para ver brinquedos, depois de uma ceia festiva e cheia de encantos. Foi toda uma vida para tocar no segredo do dia 25 de dezembro.


Foi preciso também entender, depois da segunda infância, que igualmente não era almoçar peru frio amanhecido com champanhe ou curtir a ressaca de uísque legítimo servido na véspera. Ou comentar os pileques, às gargalhadas, no sofá. Nem a sesta que recompunha tudo para enfim sermos livres a partir daquela noite, o princípio de uma corrida que iria desaguar no Reveillon, quando vestíamos branco para nos despedir da inocência.

O presente secreto cruzava as festas, o verão e nos acompanhava no inverno. A certa altura, quando deixou de ser entregue no reduto familiar, manteve-se firme, como o morro no pampa frio, uma ilha no horizonte amargo. É o que carregamos quando tudo perde seu encanto. Ele nos gruda a um acervo de ganhos, o que nos dá poder de enfrentar a maldade e a burrice. O que nos alimenta sem cessar vem de lá, daqueles Natais que jamais voltarão. Era a graça que inaugurava em nós o que temos de humano.

É uma espécie de ímã, anterior a tudo, ao almoço exercido com liberdade (no tempo em que, durante o resto do ano, obedecíamos a rituais rígidos nas refeições). Estava na base que nos fazia sentir felizes em nossos minúsculos pijamas de algodão, era anterior às posses que viabilizavam as comemorações, estava acima da confraternização ou das brigas entre primos, irmãos, pais, vizinhos.

Ele contém o segredo de uma felicidade possível, que nos parecia eterna. Vimos depois que era precária, mas ainda faz parte de nós, como uma raiz, como um choro diante da perda total, como a alegria que nos deita em segurança e nos desperta em esplendor. Graças a esse tesouro, oculto e explícito, somos o que nosso destino nos reserva: criaturas completas que não se rendem ao roubo do coração.

Quem inventou dentro de nós essa atração, esse fisgar, essa comunhão? Dizem que foi a família, a educação, a quadra do país que experimentava uma época mais equilibrada. Mas talvez a origem não se situe nesses redutos conhecidos da razão. Ou não esteja nos confins dos sentimentos. É o Mistério, que aperfeiçoamos enquanto nos é dado a glória suprema de viver.

É o que escondemos na casa antiga, atrás do canteiro, num vão da parede desmanchada, junto com a pedra lisa e transparente, um carretel que servia de roda, um pedaço de madeira que imitava uma arma. Coloco a mão nesse reduto e de lá se solta o teto da Via Láctea, que se retirou do Céu por ter encontrado, no esconderijo indevassável, o seu pouso e a sua grandeza.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada na edição de 24 e 25 de dezembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Helcio Toth, que abandonou provisoriamente, em homenagem a esta época festiva, sua vocação, os ringues de box. 3. O evento da Barca dos Livros, aqui perto na Lagoa, no sábado dia 22, em que Tabajara Ruas e eu debatemos com jovens e veteranos leitores nosso primeiro volume da trilogia Diogo e Diana, foi um sucesso absoluto. Eis uma maneira criativa de lançar um livro: conversar coletivamente sobre literatura, além de dar autógrafos.

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