6 de dezembro de 2007

ISSO ELES ENTENDEM


Nei Duclós (*)

Decidi mudar de tática no dia em que Arech Mistrô me chamou para um “particular”. Se é uma coisa que me deixa fora de si (como costumam dizer, depois que apodreceram a gramática) é alguém querer me levar para a salinha e lá começar sua arenga com “o seu trabalho está muito bom, mas...” Não admito ouvir isso porque meu trabalho não pode ser avaliado por essa gang que tomou conta de todos os cargos. Ainda mais por gente mais nova do que eu. Aliás, a humanidade inteira nasceu depois de mim e exibe a cara de bebê. Rostos lisos em peles de pêssego assomam em cadeiras e poltronas. Eu continuo de pé, escutando, fazendo parte da escravaria.

Arech Mistrô levantava o queixo para fazer seus óculos escuros redondos funcionarem como uma pistola. Aquele olhar opaco e sinistro era apoiado pela barbichinha rala. Aos 47 anos, se comportava como se tivesse 60, para usufruir das benessses da experiência que ele nunca teve. Fazia parte dessa geração que depois de roubar a adolescência do mundo por décadas, se assenhorando das memórias da minha geração (eles eram os jovens que substituíram os assassinados) agora clonavam nossa biografia com mais afinco sacudindo cabelos grisalhos ostentando saudades do que jamais viveram. Não faziam o principal quando se chega aos 60: jamais largavam o osso, permaneciam agarrados como crostas nos penhascos do bem-bom.

Nunca tivemos vez. Partimos para o exílio ou qualquer outro tipo de esquecimento. Voltamos porque era necessário viver de alguma forma. Foi aí que descobrimos: os espaços haviam sido tomados. Eles eram os maiorais da nossa época de insetos e se retroalimentavam sem parar, na mídia e nas editoras, nos ministérios e nas autarquias, dando conferências sobre o óbvio. Usavam sacadas intestinais dos novos profetas, pessoas aparentemente como eles, mas que tinham a griffe de pertencerem a algum país estrangeiro.

E foi assim que as nossas leituras e palavras caíram em desuso mesmo antes de virem à tona. Ficamos submetidos ao terror da nova tirania que vestia o terno das consultorias ou imitava a insubordinação de comportamento expurgada da revolução que chegava ao topo da grana e do capital simbólico. Nos prêmios e eventos, eles é que eram chamados. Nós estávamos morrendo, agarrados a alguma pedra que parecia flutuar, mas que revelava a vocação de ir bem fundo.

“Não é questão de geração”, me disse uma vez o Gordo Marcantônio. “É uma questão de indivíduo. Na tua geração tem muita gente que se deu bem, que até hoje dá as cartas”. Olhei para ele. A vida era uma espécie de pôquer. Morávamos numa cobertura verde de mesa de cassino. Blefar era ser. Marcantônio acabara de comer algo entre o fast-food e o desenvolvimento sustentável. Usava uma camiseta corporativa, pois fazia uma performance com seus colegas de empresa . Trabalhava numa assessoria, que acumulava com as funções na revista onde tirávamos o pão sem esperança de comer a carne. Ele enxugava a boca com um guardanapo de papel e me olhava sem me encarar, ou seja, desviava o olhar que dirigia diretamente para mim. Era uma obra-prima de simulação. O Gordo Marcantônio era um mensageiro do Mundo em Ruínas, que assim me mantinha a par do que eu deveria pensar para não fazer alguma besteira.

Mas desta vez foi demais. Arech Mistrô, por mais de uma ocasião, tinha chupado frases inteiras minhas e chegou até a assinar um texto que eu fizeram e deixara aberto no computador. Ele imprimiu, levou para a diretoria e depois veio me entregar dizendo para fazer algumas correções, que ele assinaria. Assim na lata. A conversinha na sala deveria ser sobre algo dessa estirpe, uma coluna fixa em jornalão de prestígio, que eu produziria para que ele colocasse a cara na foto ao lado do seu nome.

Por isso me precavi. Peguei um isqueiro em cima da mesa do office boy – apelidado de Gerenciador de Governança em Trânsito, uma garrafa de cachaça fina da mesa do editor de Amenidades e Frescuras e fui para lá, tendo levado junto dois copos de plástico que tirei do bebedouro.

- Olá, Poeta, tudo bem?
Era grave. Quando me chamavam de poeta havia promessa de ferro.
- É o seguinte, essa matéria de turismo está uma merda. Você revisou e deixou publicar. Na reunião com a diretoria vieram me comer por trás. Tem um conselheiro que é dono dessa birosca no litoral. Você não viu isso?
Eu não tinha mais palavras. Fazia aquilo para pagar o aluguel, a luz, o telefone. Meu erro foi ter colocado a mão naquela joça. Se você tocar na merda, a merda é sua.
- Vi sim, mas isso tudo não vale nada, ninguém lê essa porra. Vai uma cachacinha?
E comecei a encher o copo até a borda. Era um copo grande, desses de 250 ml e a catinga da pinga tomou conta da sala pós pós pós ultra moderna do chefete.
- O que é que você está fazendo? Ninguém bebe nem fuma nesta redação!
Era uma das suas máximas. Decretara essa lei de preservar a carcaça para não embebedar os vermes no futuro.
- Quer saber ô Arech ou Ariclê, não sei qual teu nome verdadeiro nem qual codinome estás usando hoje. É que você merece que eu te jogue tudo isso na cara.
E foi o que fiz. O sujeito ficou completamente lambuzado por aquele rum de quinta categoria vendida como droga politicamente correta, fabricada com as tais Isos não sei das quantas.
Antes que ele gritasse pelos guardas, acendi o pavio. Tinha aberto até o máximo o isqueiro que estava comigo.

Acho que a sala do infeliz está pegando fogo até hoje. Ele até que não se machucou. Meus socos não foram devidamente treinados. Ou nunca tive punch. Ou jamais tenha entendido o que significa um jab. Não sei dizer, mas pelo menos o ambiente ficou com um cheiro de queimado idêntico ao que estou sentindo agora. Parece que o Pavilhão 3 está revoltado. Estão colocando fogo nos colchões. Preciso ficar atento. Numa hora ou outra, essas paredes do presídio caem e eu vou poder então completar o serviço.

Porque se tem uma coisa que eles entendem é isso. Pau na costela. Manopla na orelha. Chute no queixo. Principalmente em quem gosta de escrever besteiras e se acha inteligente. Pessoas que colocam aquele aposto “se é que vocês me entendem”. Entendo perfeitamente. Enlouqueci de tanto entender. Entendo para caralho. Agora me chamem para conversar na salinha, me chamem. Mas nem para me dar aumento de salário!

RETORNO - 1. (*) Cuidado: isto é um conto, não memórias. 2. Imagem de hoje: "Mais porrada", foto de Helcio Toth (cuidado duplo!). 3. Corrigi este conto, que foi feito hoje, quando já estava no ar. Cliquem F5 e terão sempre a versão definitiva. 4. Em menos de 24 horas, mais de cem pessoas visitaram meu texto sobre Closer, de Mike Nichols (2004), o filme transmitido ontem, quarta-feira, na Globo. É a força da líder. Quando quer, passa filme que preste. Deveria querer mais, deixar de lado as porcarias. O povo gosta é de qualidade. Com isso, Closer se distancia do meu trabalho sobre as "Forças Armadas e a polícia política nos anos 30", e que estava subindo no ranking de leituras do site de maneira meteórica. O texto campeão é a reportagem sobre Menotti del Pichia.

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