19 de dezembro de 2007

DESCOBRI AS MÃOS


Nei Duclós (*)

Levei um susto quando prestei atenção na forma espalmada que se estendia na minha frente, navegando o espaço em movimento constante. Como ela se sustenta, como pode flutuar sem que eu tenha consciência plena da manobra? Possui vida própria enquanto imagino ser seu dono? Ela está em meus dois flancos a manifestar-se longe e perto do meu alcance. Estendi esse susto à parte inferior onde me situo e lá está outra forma, que se planta no chão sem assombro.

Somos anteriores a essas formas que definem partes do corpo. Somos de outra espécie, que dispensa as esferas soltas no cosmo. Não há universo na fonte de onde viemos. Somos mais do que a mente ou o sentimento ou as vontades. Somos imortais a dispensar o rolo que geramos quando decidimos povoar o vazio com invenções sem termo.

Primeiro vimos como blocos de coisas se destacaram da criação insatisfeita e assumiram manifestações idênticas à nossa essência. Elas se transformaram, ganharam vida própria e não temos mais poder sobre nada do que são ou fazem. Decidimos encarnar esses mundos estranhos para ver o que fazer com as criaturas. Vimos de perto a morte, o desmanchar de castelos, a distribuição de ruínas. Vislumbramos essa composição de momentos estéreis que corta o umbigo do eterno enquanto viramos o olhar para outros confins.

Não sabíamos o que nos esperava. Há um gargalhar nessa constatação, pois nos imaginam poderosos, capazes de tudo. Não somos mais capazes, estamos reféns da vida e seus afazeres. O mais esdrúxulo é esquecer as maneiras como nos apresentamos. Perdemos a pista do humano, esse brilho oblíquo na bolha da vida.

O humano é uma ilusão de ótica, uma irrealidade. Aproximando bem o olhar, vemos como se retorcem as almas condenadas. O que nos espanta são as orações. As almas rezam e algo acontece no movimento das esferas. Colunas de fogo se desfazem, nebulosas se rearranjam, eras são inauguradas.

Talvez a reza seja o sinal mais evidente de que existe algo maior do que nós. Uma fonte poderosa de onde saímos antes de nos aventurar por esse passeio cósmico sem sentido. Talvez bata o sino para encerrar o recreio, quando enfim poderemos deixar abandonados no quintal obscuro os objetos que nos deram alegria, no início, e depois despertaram o terror. Bolas gelatinosas de veneno, queimações de lavas mortas, súbitas luzes de navios encalhados, sargaços e sereias, amêndoas, palavras atiradas a esmo.

Alguém nos chamará dizendo para encerrar a brincadeira. Então lavaremos o rosto com essas mãos precárias, nos pentearemos e sentaremos na mesa comum com a algazarra da infância merecida. Descobriremos então que existe mesmo algo anterior a nós. É aquele colégio imenso, hoje abandonado ao infortúnio. Havia barulho de criança e som de folhas impressas sendo lidas. Éramos apenas crianças com livros, essa possibilidade que foi vencida pelo mundo sem lei.

Depois da refeição, vamos brincar com as mãos, jogando longe, para o alto, a bola de futebol esquecida pelo Diretor. Faremos gol, o gol mais intenso de nossas vidas. Gritaremos, porque é o fim do expediente e iremos então para casa, onde o Amor, plantado no portal, espera por nós.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no dia 18 de dezembro de 2007 no caderno Varieedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: a obra-prima de Michelangelo na Capela Siostina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário