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23 de dezembro de 2007
A MANHÃ PERFEITA
Nei Duclós (*)
Às vezes o amanhecer capricha porque o clima localizado neste pedaço de ilha consegue, depois de muita experiência com os laboratórios do erro, chegar a esse esplendor sem mácula, que faz do céu uma taça de cristal.
Acho graça da previsão do tempo. É um pacote de informações generalistas, que aborda o assunto no atacado, quando o clima é como o sotaque e o repertório dos pássaros, extremamente localizado. No microvarejo das condições do dia, é raro existir o que chamamos de tempo firme. Sempre há algo interferindo. O inverno, por exemplo. Ou a primavera gelada. Ou o inverno, de novo, sobrevivendo em pleno dezembro. Tem os ventos, que gostam de soprar em tardes de mormaço. Não há quem agüente. Como o dia perfeito é praticamente impossível de acontecer, apostamos na manhã sem nenhum contratempo.
Eu já tinha desistido de ver amanhecer da forma que o turista sonha encontrar a ilha. Nem sempre encontra, pois o clima aqui, como em outros lugares que conheço, adora pregar peças, especialmente para quem cruza o país continente, viaja três mil quilômetros para o feriadão e muitas vezes paga caro pela estadia. Pois aí chove muito, venta e faz frio. Logo que os visitantes somem, eis que surge uma segunda-feira amena. Suave, mas nem tanto. É difícil fazer a manhã perfeita.
Costumo acordar cedo, pois tenho pavor de insônia e me recolho, por hábito, aí pela meia-noite. Ficar acordado quando tudo escurece, exatamente o convite para fechar os olhos, parece um despropósito. Quando chega a luz do sol, naturalmente somos convidados a abrir os olhos, não faz sentido? Essa fixação por boemia, perfil dark, olheiras profundas, é puro deslumbramento com a invenção da luz elétrica. Quem nasceu em lugar pequeno e gosta da natureza acompanha o ritmo das rotações. É um trabalho danado dar a volta sobre si mesmo, ainda mais um corpanzil gigantesco como o nosso planeta, que se vira para que tenhamos porções justas de luz solar. Pois basta a terra se revirar para dormir que acendem todos os holofotes e baticuns possíveis.
Por isso gosto da noite para escorregar profundamente no sono e acordar com os diamantes azuis da manhã perfeita. Às vezes o amanhecer capricha porque o clima localizado neste pedaço de ilha consegue, depois de muita experiência com os laboratórios do erro, chegar a esse esplendor sem mácula, que faz do céu uma taça de cristal, o verde em redor um companheiro de viagem, o chão um convite ao passeio. Quando chegamos na praia, o mar está lisinho, quase uma piscina, com um frescor raríssimo, pois costuma gelar muito por estas bandas.
E lá você fica um tempo até a manhã desdobrar-se em inúmeros espetáculos. A água no azul cerúleo, os barquinhos brancos e imóveis no horizonte, a ilha em frente que emerge subitamente, como se nunca estivesse lá. Os morros ostentam tímidas bandeiras para orientar o tráfego aéreo, que, graças a Deus, não existe. A não ser a da gaivota solitária, que fica um pouco na areia e de repente se arroja em direção às ondas com uma determinação invejável. Sigo o vôo colocando a mão na testa para me proteger do sol que vai ficando alto. De repente, a ave some. Mergulhou, certamente. Viu um peixe, mas como pode ter visto assim de longe uma criatura submersa no mar opaco?
O homem com a tarrafa sabe que a gaivota percebeu existência de uma presa e também se aproxima. Fica esperando, com sua ferramenta na mão, um pouco de chumbo nos dentes, os braços prontos para projetar o grande arco que vai, enfim, capturar a refeição do dia, ou a isca para o peixe maior, futuro. Mas a gaivota mergulhou e não voltou mais. Sumiu. Ou não mergulhou? Ou se desviou enquanto meus olhos lutavam com algum filete de sol? Ou voltou e eu nem vi? Não importa. A manhã perfeita exige um banho demorado. E lá ficamos nós, enquanto os caminhantes passam na nossa frente, cumprindo metas.
Não ando, observo. Olho para todos os quadrantes. Nada consta na manhã sem mácula. Para isso se preparou o infindável universo, por todos os séculos. Para que a manhã chegasse até nós, habitantes do país ainda vivo. Há silêncio. Só mar se manifesta. O som das águas são a paisagem ao redor. Fico na areia até o calor aumentar. Hora de se recolher. A manhã perfeita continuará, abrigando novos banhistas que chegam. Eu me dou por satisfeito. Volto iluminado. Valeu a pena esperar cem mil anos por este momento.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste domingo, dia 23 de dezembro de 2007, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Caburé, Lençóis Maranhanses, foto de Irene Schmidt.
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