Nei Duclós (*)
Saindo da Ilha em direção ao Estreito, debaixo de um pontilhão, grudada numa coluna, a pichação tosca feita em tinta preta diz: "Fora, Bush". Não chega a ser um grito, é mais um protesto quase oculto, que se oferece por um segundo para quem passa. Como se o pichador tivesse dúvidas sobre a eficácia do seu ato. Ou seria a falta de atenção que jogou sobre a palavra de ordem esse ar de abandono, de reclame morto insistindo em permanecer na geografia perdida dos bairros em transformação?
Imagino o pichador como alguém encarregado da tarefa mais simples, o de se expor na rua para agitar o espaço público. Teria sido escolhido nos redutos de uma assembléia, clandestina mais por força do hábito, já que hoje está combinado que há liberdade. Jovem demais, disponível demais, humilde até a medula, não levantara o braço no primeiro impulso, considerando-se indigno da tarefa. Mas como o entorno permaneceu imóvel, ele acabou cedendo e assim fora escolhido por unanimidade. É preciso deixar, para quem é moço, os encargos de tarefas que exigem coragem física e fôlego para sair correndo caso haja flagrante.
Por isso os veteranos, depois da escolha por aclamação, lhe dirigiram aquele olhar perto do estímulo, mas na prática mergulhado num ar grave. Tantas lutas escaldaram as expressões dos combatentes. O entusiasmo original deu lugar ao equilíbrio das feições, amargadas por algumas ruínas. Isso acontece em qualquer nicho político, já que vivemos o limbo da ideologia, um clima idêntico ao dos velhos faroestes antes do grande tiroteio. "Está quieto", diz alguém de tocaia. "Quieto demais", responde seu parceiro ao lado. É a senha para o iminente desencadear da tempestade.
Mas o garoto nunca viu faroeste e tem como insumo a gana da idade, mais duas ou três leituras definitivas. Não é difícil encontrar vilões para a situação real. Os culpados assumiram a fachada que os condena, já que celebram seu status exibindo na mídia as festas, os roubos, as invasões, a violência. Nem é preciso ler Marx para entender a mais-valia, o famoso plus que sobra do trabalho escravo e fica fazendo parte do explorador. Basta conectar-se com o espírito de insurreição que fica fazendo água no navio do Sistema, essa entidade que praticamente obriga o jovem pichador a tomar uma atitude.
Então ele aguarda a noite e, contando com o apoio logístico do partido, ataca o concreto com sua indignação. Mas o presidente imperial passa célere pelos seus domínios sul-americanos, e a convocação, em poucas horas, perde o efeito, se é que isso existia desde o primeiro instante. Os autores da frase gravada já se recolheram, pensando em outras estratégias, mas o passageiro que enxerga, mesmo sem querer, as letras tortas e enormes pela janela da condução ou do carro, ganha de presente um gesto nulo, uma revolta datada, um marketing amador.
A perda de sentido de algo tão desolado depõe contra o movimento de libertação. Há mais proveito nas frases enigmáticas, como esta, exposta para a limpeza pública num enorme muro: "Cata-vento não gera poder central". O que realmente significaria? Era uma máxima técnica? Transcendia para a religião, a auto-ajuda? Uma coisa é certa: muito depois de Bush ter dado o fora, enterrando de vez a vaia tímida na coluna do pontilhão, a frase dos cata-ventos sobreviverá. Nunca perderemos a esperança de desvendá-la definitivamente.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de outubro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
2. Continuo ofendido com a ameaça do Blogspot de tirar o Outubro do ar. Já pediram desculpas, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.
3. Horário de verão: chove e faz frio no estado. Pessoas que madrugam para trabalhar acordam na mais completa escuridão, abaixo de chuva e, encapotados, aguardam as conduções. Tudo para satisfazer os burocratas que economizam à custa da saúde da população.
4. Festas de outubro. Descobriram a pólvora: tem carro demais para pouca estrada. Ninguém mais suporta esperar, então todos ultrapassam. O resultado é um massacre. Só em estradas federais, no feriadão, 92 mortos. Querem "aproveitar". Vemos os energúmenos abraçados e saradões se entupindo de álcool. Chamam de indústria do turismo. O nome é outro.
Saindo da Ilha em direção ao Estreito, debaixo de um pontilhão, grudada numa coluna, a pichação tosca feita em tinta preta diz: "Fora, Bush". Não chega a ser um grito, é mais um protesto quase oculto, que se oferece por um segundo para quem passa. Como se o pichador tivesse dúvidas sobre a eficácia do seu ato. Ou seria a falta de atenção que jogou sobre a palavra de ordem esse ar de abandono, de reclame morto insistindo em permanecer na geografia perdida dos bairros em transformação?
Imagino o pichador como alguém encarregado da tarefa mais simples, o de se expor na rua para agitar o espaço público. Teria sido escolhido nos redutos de uma assembléia, clandestina mais por força do hábito, já que hoje está combinado que há liberdade. Jovem demais, disponível demais, humilde até a medula, não levantara o braço no primeiro impulso, considerando-se indigno da tarefa. Mas como o entorno permaneceu imóvel, ele acabou cedendo e assim fora escolhido por unanimidade. É preciso deixar, para quem é moço, os encargos de tarefas que exigem coragem física e fôlego para sair correndo caso haja flagrante.
Por isso os veteranos, depois da escolha por aclamação, lhe dirigiram aquele olhar perto do estímulo, mas na prática mergulhado num ar grave. Tantas lutas escaldaram as expressões dos combatentes. O entusiasmo original deu lugar ao equilíbrio das feições, amargadas por algumas ruínas. Isso acontece em qualquer nicho político, já que vivemos o limbo da ideologia, um clima idêntico ao dos velhos faroestes antes do grande tiroteio. "Está quieto", diz alguém de tocaia. "Quieto demais", responde seu parceiro ao lado. É a senha para o iminente desencadear da tempestade.
Mas o garoto nunca viu faroeste e tem como insumo a gana da idade, mais duas ou três leituras definitivas. Não é difícil encontrar vilões para a situação real. Os culpados assumiram a fachada que os condena, já que celebram seu status exibindo na mídia as festas, os roubos, as invasões, a violência. Nem é preciso ler Marx para entender a mais-valia, o famoso plus que sobra do trabalho escravo e fica fazendo parte do explorador. Basta conectar-se com o espírito de insurreição que fica fazendo água no navio do Sistema, essa entidade que praticamente obriga o jovem pichador a tomar uma atitude.
Então ele aguarda a noite e, contando com o apoio logístico do partido, ataca o concreto com sua indignação. Mas o presidente imperial passa célere pelos seus domínios sul-americanos, e a convocação, em poucas horas, perde o efeito, se é que isso existia desde o primeiro instante. Os autores da frase gravada já se recolheram, pensando em outras estratégias, mas o passageiro que enxerga, mesmo sem querer, as letras tortas e enormes pela janela da condução ou do carro, ganha de presente um gesto nulo, uma revolta datada, um marketing amador.
A perda de sentido de algo tão desolado depõe contra o movimento de libertação. Há mais proveito nas frases enigmáticas, como esta, exposta para a limpeza pública num enorme muro: "Cata-vento não gera poder central". O que realmente significaria? Era uma máxima técnica? Transcendia para a religião, a auto-ajuda? Uma coisa é certa: muito depois de Bush ter dado o fora, enterrando de vez a vaia tímida na coluna do pontilhão, a frase dos cata-ventos sobreviverá. Nunca perderemos a esperança de desvendá-la definitivamente.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de outubro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
2. Continuo ofendido com a ameaça do Blogspot de tirar o Outubro do ar. Já pediram desculpas, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.
3. Horário de verão: chove e faz frio no estado. Pessoas que madrugam para trabalhar acordam na mais completa escuridão, abaixo de chuva e, encapotados, aguardam as conduções. Tudo para satisfazer os burocratas que economizam à custa da saúde da população.
4. Festas de outubro. Descobriram a pólvora: tem carro demais para pouca estrada. Ninguém mais suporta esperar, então todos ultrapassam. O resultado é um massacre. Só em estradas federais, no feriadão, 92 mortos. Querem "aproveitar". Vemos os energúmenos abraçados e saradões se entupindo de álcool. Chamam de indústria do turismo. O nome é outro.
5. Proponho outro tipo de evento: junta a macacada em determinada área de risco e peçam para todo mundo cavar um sistema de esgoto. Milhares de pessoas em quatro dias de folga fazem isso com o pé nas costas. Enquanto cavam na lama, toquem Jimi Hendrix no clássico oculto "Peace in Mississipi".
6. Primavírus: as pestes não nos abandonam. Hasta quando?
6. Primavírus: as pestes não nos abandonam. Hasta quando?
7. Imagem de hoje: Gato, de Regina Agrella.
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