15 de junho de 2007

A TRANSGRESSÃO SOB MEDIDA


Romper limites significa enquadrar-se em outros parâmetros. Exemplos não faltam. A revolução do comportamento serviu para adequar a indústria cultural às demandas das novas gerações. O movimento pela qualidade total acabou num engessamento de conceitos e hábitos, hoje repetidos como verdades incontestáveis, num discurso insuportável. Romper com o imobilismo estatal criou a monstruosidade neoliberal. Mandar tudo à merda serve como insumo literário. O naturalismo cevou o ambiente propício para a proliferação dos eco-chatos. A luta armada acabou dando sobrevivência a várias ditaduras. A inovação cinematográfica colocou de mão beijada uma série de soluções para filmes bem comportados. Não há, então, saída?

Claro que não. O universo, feroz e hostil, vive do conflito, desumano por excelência. Tudo o que o coração dita cai na vala comum. O segredo é continuar, mantendo azeitada a máquina de criar problemas. Os americanos dito progressistas é que mais me invocam com suas tentativas de transgressão. O filme O homem do ano, por exemplo, de Barry Levinson, com Robin Williams, Laura Linney, Christopher Walken, deita e rola sobre as eleições americanas depois do escândalo Bush. Mas tudo serve para enquadrar o sistema na sua necessidade de incluir as forças emergenciais, como os candidatos independentes, que acabam servindo de repasto para o bipartidarismo. Este, no filme, sai revigorado do embate, porque não há verdadeira liberdade de expressão nos Estados Unidos: tudo precisa ficar nos limites do Império.

Mas é fato que o filme se aproveita das margens largas das liberdades constitucionais e acaba sendo uma boa investida contra a babaquice das campanhas eleitorais. Robin Williams, que perde tempo fazendo dramas, está no seu melhor elemento: é uma gag hilária atrás da outra, ditas em ritmo de metralhadora giratória, arrancando risadas sinceras do elenco. Vi também outro filme em que ele atua, Segredos da Noite, um melodrama mal feito metido a ser de suspense, que nos estimula a evitá-lo. Por um tempo deixei de lado os filmes com o ator. Gostei de Bom, dia, Vietnã, do mesmo Levinson, mas A Sociedade dos Poetas Mortos é o que diz o título, mortal. Esteve na moda, mas passou.

Os comediantes enfrentam uma maldição: são compulsivos e, quando abastecidos de bons textos, de escritores ótimos que militam na indústria cultural, imbatíveis; mas quando implodem por necessidade de mostrar o quanto são bons atores fora da comédia nos irritam. A comédia possui drama, não precisa ir até a outra ponta para provar nada. Chaplin, que sabia de tudo, nos deu maravilhosas comédias dramáticas. Mas Jerry Lewis, por exemplo, que é um gênio, acaba fazendo filmes pífios quando se mete a chorar, a começar como O Rei da Comédia, em que perde tempo com Robert de Niro, ou a apenas distrair, como Três num sofá, filmeco dos anos 60 hoje esquecido.

Comédia é transgressão pura e simples. O drama é o enquadramento do personagem nos limites que devem se acomodar depois que houve o rompimento dos diques. "Faça-os rir, faça-os chorar", diz o ditado. Você conquista o público mandando tudo às favas e depois lembra que somos mortais. É o momento da lágrima. Mas há um problema: quando a comédia se atém à sua própria aparência, de apenas tentar fazer rir, normalmente gera coisas como aquelas idiotias dos anos 80, em que adolescentes americanos reprisavam suas gags escatológicas. Como Wayne´s world, ou American Pie, que já foram desta para a pior.

Prefiro a comédia que encerra em si o drama e não um comediante querendo nos emocionar com sua performance metida a séria. Robin Williams deveria insistir nesse vetor, que está quase abandonado hoje. O que existe de grande comediante na atualidade? Borat, o imbecil? Ainda não vi, mas adivinho o que seja. Jerry Seinfeld? Está aposentado. Jim Carrey? Péssimo. É melhor ator em drama do que nas suas horrendas comédias. Resta Robin Williams. E em O homem do ano (que recebeu a péssima tradução de O candidato aloprado) ele está realmente ótimo. Vale a pena.

ADENDO - Faltou dizer duas coisas deste filme. Primeiro, a crítica ao sistema informatizado de eleições, super exposto a fraudes. Segundo, o papel ocupado pelo Brasil no bestialógico do candidato: ele se refere ao nosso país como o lugar onde as freiras usam fio dental. É isso o que colhemos, depois de décadas sem soberania: a imagem de um país irresponsável, onde os corpos da cidadania estão disponíveis.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Robin Williams em "The Man of the Year". Ao fundo, uma transgressão das cores da bandeira americana, que nasceu de uma outra trasgressão (a guerra contra os ingleses) e é por isso que é representada por tiras, faixas - como as faixas de segurança e a roupa tradicional dos prisioneiros. 2. Aleksandro Vanin, repórter (e agora novo editor executivo) da revista Empreendedor, que editei por três anos, foi o grande vencedor do Prêmio Ethos de Jornalismo, com sua matéria de capa, "Novos negócios do clima". É uma novidade importante: por várias vezes, os jornalistas da Empreendedor inscreveram reportagens nos prêmios nacionais e sempre ficavam à parte. Desta vez, Vanin rompeu a barreira. Ganha o jornalismo, ganha a editora e ganha principalmente o jornalista esforçado e brilhante. Parabéns, Vanin!

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