12 de junho de 2007

BABEL, DE IÑÁRRITU E ARRIAGA



A indústria do cinema nos confunde. A maioria de suas produções são asneiras, ditadas pelo marketing criminoso. Filmes que podem ser sintetizados pelos protagonistas andando ou correndo em direção às câmaras enquanto, atrás deles, uma barreira de fogo inunda a tela. Bobagens fruto da mente crua dos produtores, que apostam na imbecilidade do público. Depois vêm os filmes encomendados. Vários lobbies participam desse vetor cinematográfico: a CIA, o FBI, o serviço secreto americano, a Marinha, o Exército, os advogados etc. pagam por fora para que atores, diretores e roteiristas obedeçam (às vezes, convictamente) aos ditames das corporações. Não é teoria da conspiração: veja como tremem de emoção os atores encarnando a repressão do Império. A emoção vem da grana preta que levam, não das convicções ideológicas.

Para se opor a essas barbaridades, nasceu e cresceu o cinema alternativo, que se alimenta do experimentalismo, dos grandes mitos do cinema do passado e da necessidade de romper barreiras econômicas e políticas para chegar ao público. Quando o cinema é de Alejandro Gonzáles-Iñárritu e do roteirista Guillermo Arriaga, que tinham já nos dado dois grandes filmes, Amores brutos e 21 Gramas, o alternativo migra para a grande indústria. Os dois gênios mexicanos chegam agora ao absoluto esplendor com Babel, o filme que não cabe num resenha, pois ousa participar da espiral de formação da obra humana que procura atingir a a divindade. Soa exagerado? Sim, ainda mais quando se sabe que tem Brad Pritt na parada.

Tudo não passaria de uma enorme campanha publicitária a favor de grandes astros, grandes produções, grandes coisas. Mas não é. Trata-se de uma obra-prima. É um filme sobre pais e filhos, um mergulho radical no mundo reunido na mesma torre, a indústria da comunicação, que enfeixa poderes e exclui povos e gerações. Você já viu, fora da pornografia, algum filme sério sobre adolescentes japonesas surda-mudas com grande gana sexual? Ou um filme em que essas adolescentes estão ligadas a um pequeno episódio no interiorzão do Marrocos que acaba virando um case internacional? Duvido que você tenha visto um casamento mexicano, testemunhado por duas crianças americanas, com desfecho trágico no meio do deserto da fronteira, do jeito que é narrado pela dupla de gênios.

Pois esses episódios estão ligados na já célebre arte dos dois de cruzar as seqüências de maneira demolidora, para que o espectador não se acostume à linearidade narrativa, que no fundo não passa de imposição de idéias e comportamentos. Tem muita gente metida a espertinha fazendo estripulias nas câmaras e tentando ser o que não são, achando que experimentam, mas não passam de redundantes. Um filme burro que vi esses dias trouxe o diretor D.J. Caruso se definindo como um misto de Hitchcock com John Cassavetes. Cate-se, bobalhão. Iñarritu e Arriaga, ao contrário, têm pleno domínio dos seus ofícios.

Eles conseguem ser cada vez mais contundentes na montagem narrativa. Desta vez, em vez do cruzamento caótico de situações, há uma composição seqüencial definida por cenas chaves, que delimitam os trechos, ou capítulos, da história. A partir desse tipo de cena, se desenrola em flash black, os acontecimentos que deságuam nela. Isso é feito de maneira segura, levando o espectador à complexidade das relações entre pessoas, governos, povos e nações. O detalhe é que a dupla cinematográfica não aposta no tiroteio desenfreado, nos personagens irreais de valentões e covardinhos. São pessoas comuns envolvidas em detalhes que se apresentam, por força das idéias fixas e dos interesses em jogo, como grandes trapalhadas globais, capazes de gerar ainda mais injustiça.

É absolutamente tocante a interpretação dos atores. Brad Pitt, um quarentão detonado, precocemente envelhecido, faz o pai arrependido de ter deixado as crianças em casa enquanto procurava uma saída conjugal com sua esposa, interpretada por Cate Blanchet. Esta, é o retrato do desespero diante do marido e do mundo. Rinko Kikuchi, a adolescente em crise, e Adriana Barraza, a babá mexicana que cruza a fronteira carregando as crianças americanas, e nisso encontra sua desgraça, estão extraordinárias em seus papéis. Todo mundo foi indicado para o Oscar. Deveriam ter levado.

O episódio marroquino é bíblico: lá entram Abrahão (o sacrifício do filho), Caim e Abel (a maldição do favorito), incesto, perseguição, fuga. O garoto que apontou o rifle contra os turistas, de joelhos, diante do policial, confessando sua culpa, é um dos grandes momentos cinematográficos da atualidade. Veja Babel, do cineasta Inãrritu e do roteirista Arriaga. É um filme que faz falar as pedras.

"Se queres ser compreendido, escuta", diz Iñárritu no final. Ele dedica o filme a seus dois filhos.

RETORNO - Imagem de hoje: Brad Pritt, o pai arrependido, em "Babel".


EXTRA - COMENTÁRIOS EM DESTAQUE

Duas pessoas escreveram comentários que merecem destaque. Um deles é Clovis Heberle, autor de um blog que resgata suas viagens seminais pelo mundo e que daqui a pouco sairão em livro (ei, editoras, acordem). Clovis me enviou sua mensagem por e-mail. Aqui está o que ele disse:

"Sou leitor constante do teu site e do blog, imantado pela clareza dos argumentos, o raciocínio lógico, o estilo elegante e a força dos textos, tanto no elogio quanto na crítica. Ao terminar de ler As Verdades Definitivas, pedi ajuda ao Aurelião para exprimir o que senti, e achei uma boa definição, que vale também para o conjunto da tua extensa obra: Lucidez: penetração e clareza de inteligência; perspicácia; acuidade. Lúcido: que luz; resplandecente, brilhante, luzente."

"No Diário da Fonte, escreveste uma excelente crônica sobre a idiotice da nossa classe média que, sem $$$ para ir aos Alpes, às Montanhas Rochosas ou até mesmo a Bariloche, corre para a Serra (catarinense e gaúcha) na esperança de ver NEVE. Uma de tantas coisas que me incomodaram nos 35 anos trabalho em rádio, TV e jornal era, a cada inverno, ver a mobilização de equipes para cobrir a queda de neve (que, com o aquecimento do planeta, não dá o ar da graça desde 1994). Frustrados, repórteres e fotógrafos têm que se contentar com aquelas materinhas "de ambiente", com os hotéis cheios de babacas paulistas, cariocas, mineiros e nordestinos (afora os nossos conterrâneos) que, mais uma vez, não viram a neve. Poderiam ter poupado a sua graninha e batido queixo em Campos do Jordão, Petrópolis ou qualquer cidadezinha do altiplano mineiro ou paulista, onde no inverno também faz frio. Ver a neve é um de tantos aspectos da nossa colonização cultural do qual o mais visível é o mito do White Christmas, com papais noéis enxarcados de suor ao sol de dezembro naqueles trajes vermelhos criados pela Coca Cola. Não é um delírio? Abraços."

O outro comentário é de

Caro Nei,

Em primeiro lugar meus cumprimentos pela lembrança da pena do competente Julio Monteiro Martins. Julio nao é apenas contista, poeta, romancista e docente da Universidade de Pisa. E' também o fundador da melhor revista literaria do Web italiano: www.sagarana.net. Nao existe nada igual no pais, nem mesmo os periodicos de literatura mantidos pelos grandes titulos do jornalismo italico conseguem igualar a elegancia e a alta qualidade das propostas de Sagarana.

Em segundo lugar gostaria de comentar com voce o fenomeno Chavez porque estive na Venezuela por um periodo de tempo suficientemente longo e em situaçao de observador privilegiado. Nao entro no mérito dos exageros retoricos do personagem, quero apenas lembrar que a Venezuela, sob o governo de Chavez, conseguiu enfrentar o problema da falta de soberania nacional e lançar as bases de um processo de libertaçao da miséria politica que aflige o Brasil e todos os demais paises da area do Mercosul.

Na Republica Bolivariana da Venezuela nao seria possivel um ato como aquele cometido pelo criminoso Fernando Henrique Cardoso, que assinou a doaçao de quase 60.000 hectares de Amazonia aos EUA com a finalidade criaçao de uma base militar interessada na utilizaçao de misseis com ogivas nucleares. Nao seria admissivel na vida politica venezuelana um gesto como aquele do delinquente Menem que entregou aos Estados Unidos uma area de territorio argentino na Patagonia, quase igual à brasileira, para a construçao de uma outra base militar. Sabe por que? Porque a Constituiçao da Venezuela proibe a "doaçao ou cessao de partes do territorio nacional para atividades militares de paises estrangeiros ou coalisoes dos mesmos".

Jamais possui' uma copia da Constituiçao Brasileira na minha biblioteca mas achei um cantinho para a Constituiçao da Republica Bolivariana da Venezuela porque ela propoe com coragem os limites claros de um estado soberano, coisa que nem a arrogante Uniao Européia pode permitir-se.

Poderia falar do programa de supermercados populares e do abastecimento associado ao trabalho das muitas cooperativas engajadas na luta para produzir alimentos a pouco custo. Poderia falar da assistencia médica de base dentro das periferias mais pobres do pais, onde voce, por exemplo, realiza um exame de olhos e leva para casa os oculos que necessita de maneira gratuita (aconteceu comigo). Mas prefiro dizer a voce o seguinte: se tivesse vinte anos a menos iria viver na Venezuela.

Não posso desculpar a idiotice dita pelo Chavez em relaçao ao Congresso Brasileiro. Mas, posso desculpá-lo em relaçao à cassaçao da concessao da emissora que, durante anos sempre gozou de total liberdade para realizar programas onde as instituiçoes politicas venezuelanas e os símbolos eram enxovalhados. Nem no Brasil permissivo das todo-poderosas redes de televisao isso seria tolerado. Um abraço."


Agradeço aos dois pelos belos textos sobre o Diário da Fonte. Ao Alberto respondi o seguinte: "Obrigado pela sua competente intervenção, Alberto. As evidências apontadas por você dão banho no que se faz por aqui. Implico demais com o Chavez porque o acho oportunista, fanfarrão e perigoso. Está fazendo o jogo dos americanos, colocando lenha da fogueira, militarizando o país e tentando nos envolver. Aqui se cometeram crimes porque o Brasil optou, depois dos desastres de 1964, 1968 e 1984, por um caminho mais prudente. A tragédia é que os bandidos aproveitaram essa experiência popular para tomar conta do butim. Ficamos no mato sem cachorro.

Chavez ficou imobilizado no golpe de 2002. O povo o devolveu ao poder. Mas me parece que ele atribui a si mesmo todos os louros da vitória e está cometendo graves erros estratégicos. Vai colocar fogo na mata. Aí, salve-se quem puder.

À parte minhas posições, te agradeço pela contribuição ao debate, fundada na tua experiência pessoal e muito bem apresentada no teu comentário. Volte sempre, pois precisamos de tuas luzes."

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