Nei Duclós
A agenda do dia se manifesta logo ao acordar. São como palavras que existem em espaços vazios da linguagem. Tens um discurso diário, mas há ranhuras nele, onde se acomodam, embrulhadas, futuras ações ainda encobertas. Abres o olho com a primeira claridade da manhã e repassas o diálogo interno do que se deve fazer. É preciso que existam instrumentos favoráveis para que tua carapaça, essa soma de tempo e matéria sob o comando de vontades nem sempre determinadas, possa levantar mais ou menos com uma direção.
Aparentemente é tudo muito corriqueiro. É preciso higiene, café, pão, fogo. Um estoque mínimo de tabaco, a única droga que sobreviveu, já que o álcool provou ser veneno, mesmo em doses chics, essas de vinho caro. Na primeira quadra do dia, completadas as tarefas do despertar, partes para o segundo capítulo, como se a agenda fosse o romance que escreves com tuas pernas pesadas, teu corpo esquecido, tua mente distraída. É o momento de pegar o carro e providenciar alguma coisa. Água de côco, laranja, iogurte, jornal e uma peça de resistência para o almoço que se aproxima.
Entre uma e outra manobra, se retorce nos cantos da agenda tua disposição de escrever alguma coisa, dizer algo que pinica na tormenta da idéia em permanente soprar. São sementes que queres espalhar pelo mundo. Talvez, quando acordas cedo, elas já tenham sido alinhavadas e esperas o retorno que tarda. Há indiferença no mundo e tua preocupação é não atrapalhar a vida alheia, apenas colocar a bola no canto e chutar em direção à meta. Há um estádio em compasso de espera. Ele está cheio de gente. Mas basta um ruído tosco para tudo desmoronar.
Há um fragor de serras elétricas no país em obras, ou em ruínas, o que vem a dar no mesmo. O barulho é a vida espiritual da nação. Marteladas, gritos e um alto-falante anunciando alguma coisa incomprável, um evento inassistível, uma promoção absurda. Mas tudo passa e a rede, velha, na varanda, aguarda o momento de mais uma contribuição para que rompas todos os recordes de concentração e devaneio. Vives no mundo da lua, que aqui costuma aparecer de dia. Imaginas visitas estapafúrdias, de criaturas voadoras dentro de bolhas de sabão de plástico. Olhos avermelhados te enxergam e depois se recolhem na nave que assomou na montanha. Tudo volta ao normal quando um bentevi faz algazarra para o beija-flor, que ainda insiste em navegar as plantas em absoluto isolamento.
Quando cai a tarde, um livro ou um filme te ajudam a passar as horas. Um compromisso, pessoal e inadiável, te leva novamente à tela
No crepúsculo, já tens o dia ganho. Palmilhaste o sonho de viver mais um pouco, enquanto avalias o estrago que os dias fazem nos teus gestos. Cada vez fica mais difícil andar, se virar, se levantar. Então você promete: vou cortar decisões, enterrar desesperanças, alimentar temperaturas amenas. Mas é inverno e as nuvens não te deixam sonhar. Então, na cadeira de pano, refletes sobre o que ficou à margem, nas dobras deste destino incerto, aquelas palavras que se retorceram logo que acordaste.
Elas continuam lá. De vez em quando, chegam até a superfície. Um encantamento então te inunda. Há vida em universos escondidos! Há música nas rachaduras da rotina! Há vez para completarmos os planos sempre adiados. É assim que se manifesta o amor de ficar exposto ao gigantesco céu que enfim se descobre. Mesmo ameaçando trazer mais frio, ficamos tontos de tanta vida. Porque tudo é mistério e enxergas cada vez menos, mas há grandeza em teu abandono, força no teu vislumbre e poder na agenda que escreves todos os dias, de olhos semicerrados e o coração aos pulos.
Quando nada há para escrever, é aí que se manifesta o texto que dormia na parte mais funda das tuas roupas indomáveis.
RETORNO - Imagem de hoje: batizei de "O dia partido em Sampa". Foto de Helcio Toth.
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