9 de dezembro de 2006



O QUE REALMENTE INCOMODA

Não é o Iraque nem qualquer governo que te incomoda. Nem o trânsito ou a fome. Nem o salário ruim ou os problemas de saúde. Tudo isso faz parte da vida, você vai levando. O que realmente incomoda é o vazio provocado pelos teus interlocutores. É a bola quadrada que te devolvem quando tens a pachorra de expressar um mínimo de entusiasmo. O espírito de porco te aguarda na dobra de qualquer alegria. Há sempre a falsidade celebrando o que dizes, mas no fundo do olhar aquela vontade de que te ferres. Chega a ser involuntário, muitas vezes. As pessoas estão marcadas pelo não e desprezam qualquer tentativa de superação. Então o importante é te puxar para o vale de lágrimas, de onde jamais tentarás sair. Dizer essas coisas te incomoda? Talvez este texto seja o que ele próprio condena. Assim caminha a humanidade.

PASSEIO - Quanto contamos algo a alguém, queremos compartilhar o espírito das coisas. Queremos também que nossos pensamentos e sentimentos tenham uma vida social. Levamos a emoção para passear. Damos uma volta no parque com nossos sonhos. Levamos projetos impossíveis para festas. Convocamos uma reunião para apresentar o power point da nossa utopia. Mas isso não é visto com bons olhos, só com os maus. A verdade é que existe um fosso entre o indevassável mistério que habita o coração selvagem e a vida que precisamos viver para continuar em frente. Há um abismo entre a poesia e o emprego. Ninguém atura transcendência num espaço que é pura guerra. Mas costumamos insistir. Não é possível que iremos passar a vida mentindo sobre nós, ou então exibindo espetacularmente nossas fraquezas, o que dá no mesmo. Não se trata de fazer psicoterapia de grupo em ambiente de trabalho. Mas de dividir a humana presença entre seus pares, projetar o que há de melhor em ti, encaminhar o abraço sincero quando nos falta o chão. Mesmo que ninguém precise dessas baboseiras aqui descritas, é bom saber que é possível romper a barreira do tédio e da brutalidade, deixar de lado as frescuras psicológicas e investir na arte que podemos gerar todos os dias.

ARTE - Porque é de arte que se trata. A arte que em algum momento ganha enfim as ruas em forma de livro, peça, concerto. Ou então fica como algo inesquecível para quem convive contigo. Alcançar o estado de arte na vida diária é o desafio para que deixemos para trás o que nos incomoda. Compor essa galeria de quadros soberbos que só tu, pintor precário, poderás criar. Assobiar essa música do instante, compor aquela velha canção que ficará restrita a teus redutos, fazer o gesto que redime, dizer a palavra que semeia, compor em grupo uma valsa sem notas musicais, apenas com silêncios cúmplices de quem sabe que estamos nesta vida para alguma coisa, e essa coisa é produzir arte em todos os sentidos. O vazio que tem impõem é porque existe perseguição à arte diária, não é permitido que alcances a eternidade sendo apenas a pessoa que não te tira o sono. Há esforços para te impedir de chegar a algum resultado. Mas sabes que nem todo mundo é assim. Há cumplicidade e teu papel é saber que a arte é múltipla e está por toda parte. Quem te rodeia tem grandeza e se eles geram o vazio dentro de ti é porque não estás entendendo direito como funciona essa difícil arte da sobrevivência. Cada momento ruim tem uma lição eterna. Aprendemos todos os dias diferentes modos de fazer da terra um lugar habitável.

RETORNO - Imagem de hoje: Menino sobre o tronco, Curionópolis, de Marcelo Min, o cara que cria arte no cotidiano, com o olhar sintonizado nos excluídos.

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