19 de agosto de 2006

O CINEMA COMO ENCANTAMENTO





Cinema dá trabalho. É uma arte que convoca todos os ofícios e precisa das pessoas certas no lugar certo. No filme A encantadora de baleias (2003), temos exemplo de sobra dessa tarefa complicada. Começa pelo escritor que bolou a história, Witi Ihimaera. Ele estava no 33º andar de um edifício em Nova York quando ouviu um helicóptero. Olhou para baixo e viu uma baleia no rio Hudson. Isso carregou seus arquivos da infância e desse insight surgiu o filme. É um profundo trabalho de elaboração, que gerou uma fábula moderna e encantou a cineasta Niki Caro. Para escolher a atriz principal, Keisha Castle-Hughes (no papel da herdeira do mito fundador da sua aldeia, Paikea "Pai" Apirana), foi preciso testar milhares de adolescentes. Para complicar, Keisha (que foi indicada ao Oscar de melhor atriz) mentiu que sabia nadar. Na hora H, foi preciso usar uma dublê.

Tem mais. Como conseguir fazer a cena das baleias encalhadas? Basta pensar em algum alemão. Tudo o que precisa fazer e é complicado, pense nos alemães. Foi o que fizeram. Uma empresa de efeitos especiais da Alemanha construiu as baleias. E como escolher as baleias de verdade para as cenas do fundo do mar? Muita pesquisa até chegar ao ponto. Certo, agora a música. Lisa Gerrard compôs, dizem, a mais triste melodia do mundo, a partir do canto real das baleias. Ela foi fisgada pelo trabalho, pela tarefa árdua e gratificante que tinha pela frente. E, por cima de tudo, o orçamento, escasso. Era preciso fazer da forma mais econômica possível, sem comprometer a qualidade. Tudo isso desaguou num filme encantador, que passa por cima do conceito de clichê, pois consegue transcender a visão ideológica estreita, em que caíram alguns resenhistas.

CURSO - Os críticos de cinema se acham muito espertos. Estão sempre dando aulas de cinema e nem aproveitam o mais completo curso de cinema hoje existente: os extras, os making off, os depoimentos que acompanham a obra nos dvds. Os resenhistas ainda estão no tempo da pose intelectual diante da produção audiovisual, como se vivessem na época em que você ia ao cinema e se retirava para a máquina de escrever. Isso não é mais possível. Você precisa escutar o que dizem do filme, não apenas assisti-lo. Assim poderá ter parâmetros mais precisos para sua análise. Um dos crimes que se cometem é não deixar-se arrebatar. Encantar-se com o cinema parece ser pecado. Tudo tem a marca da maldade. Por quê?

APRENDIZ - Pois eu gostei do filme. Não é dos meus favoritos, mas respeito o trabalho insano de tanta gente e o resultado maravilhoso que conseguiram. A história lembra a sacada de Don Juan quando encontrou Castaneda. O velho bruxo achou estranho que todos os sinais do aprendiz se depositavam naquele cara vindo de Los Angeles (na verdade, vinha do Brasil). Por que não um aprendiz dali mesmo, do México? Pois Don Juan não deu bola e iniciou Castaneda nos segredos supremos. No filme, o velho não se dá conta que a herdeira está debaixo do seu nariz e que ele precisa entregar-se às evidências. Teima até o fim e quase mata a menina.

É o tema do obscurantismo. Você não reconhece o talento ou o destino alheio, portanto não sabe nada, está no meio da treva. O desprendimento da garota, seu amor pelo avô e sua certeza da linhagem a qual pertencia salvam a história. Pode ser confundido como algo politicamente correto e obsoleto. Para que raízes numa época tão global? Para que rostos se somos números? Para que preparar o corpo para a luta na época do arsenal nuclear? É só lembrar Einstein. Não sei como será a terceira guerra mundial, disse ele. Mas a quarta será a machado. Grande Einstein.

FÉ - A tribo Maori, que vive no leste da Nova Zelândia, acredita ser descendente de Paikea, o domador de baleias: eis um assunto magnífico para um livro e um filme, que tem aquele poder de encantamento raro e merece nossa admiração e nossa fé.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Keisha Castle-Hughes como a Encantadora de Baleias. para ela, nadar não era importante e sim atuar. 2. Urariano Mota nos fala sobre aqueles jogos de futebol do Recife da infância e adolescência no espaço Literário do Comunique-se. Uma de suas melhores crônicas. 3. Vi o copião do filme "As cartas do domador", de Tabajara Ruas. Um trabalho impressionante, fruto de muito suor e muito talento. 4. Uma crônica primorosa sobre a biblioteca do avô, de Ida Duclós em seu blog.

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