3 de agosto de 2006

"DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A AMBULÂNCIA"





A boutade do frasista Vicente Matheus, que serve de título para a edição de hoje, nos remete ao assunto medicina no Brasil em cacos. Alguns médicos salvaram minha vida, mas não é disso que estou falando. Não tenho ido a médico desde que fiz uma bateria de exames e fui enxovalhado, xingado, desprezado e acusado de tudo que é coisa. Você é isso e aquilo e está assim porque não passa disso e daquilo. Paradigmas da virtude e do bem estar, os sujeitos por trás da mesa nada sabem sobre você e apostam no que temos de pior. Médico não deveria focar na doença, no erro. Eles fazem isso para lavar as mãos. Já que és um sujeito terminal , o que a medicina fizer será lucro e se nada adiantar, bem, pelo menos tentamos. Eles precisam ver o paciente como uma pessoa saudável, que cuida de si e que, se está com algum problema, é porque houve desvio do percurso, precisa de um esclarecimento, mas jamais deve ser tratado como um marginal. Mas eles apenas refletem o ódio ao cidadão, cevado pelo poder público, haja visto o escândalo dos sanguessugas. Desviam verba logo de onde, de um serviço do qual não dispomos, o de ser recolhido em casa, na emergência, por uma ambulância.

TRAGÉDIA - A indiferença é a grande tempestade que se abate sobre nós. Recebo fotos de crianças estraçalhadas no Líbano, enquanto o presidente que lançou o fogo sinistro aparece sorrindo em frente às câmaras e seus adversários não cessam de lançar também suas bombas. Não se trata mais de ódio, mas de indiferença. A única ligação que tínhamos com o Outro eram a cultura, a arte e a religião, que foram erradicadas ou contaminadas pelas obsessões. O melhor da criação humana é a diversidade, é prestar atenção na vida alheia, não no sentido de saber para falar ou fazer mal ao semelhante, mas descobrir o eterno no instante, tema do livro poderoso de poesia que estou lendo e que daqui a pouco direi qual é. O espírito humano precisa da transcendência para sobreviver. "Pintamos nosso corpo para nos diferenciar dos bichos", dizia Stênio Garcia desempenhando o papel de índio no filmaço de Hector Babenco, Brincando nos campos do Senhor. Vi há décadas Stênio Garcia na peça Cemitério de Automóveis em São Paulo e vejo hoje na série Carga Pesada. Um dos nossos grandes atores, está mal aproveitado, assim como Othon Bastos, que nos dói ver em tantas novelinhas das seis. Dêem uma chance à arte e coloquem esses atores em algo realmente grande, para que todo o povo se emocione de verdade e não apenas verta lágrimas diante de scripts pífios e falas insossas. É indiferença demais. E ninguém reclama.

ESTANDARTE - Falei em Vandré e na pesquisa redescobri Porta Bandeira, sua clássica marcha rancho, que deveria ser cantada pelo povo em cordão delirante todos os carnavais. "Eu vou levando a minha vida enfim, cantando, que canto sim e não cantava se não fosse assim, levando para quem me ouvir, certezas e esperanças para trocar, por dores e tristezas que bem sei, um dia ainda vão findar, o dia que vem vindo e que eu vivo para cantar, na avenida girando estandarte na mão para anunciar". Vandré era a anti-indiferença. Nós o perdemos, depois do mistério de sua prisão e desaparecimento por algum tempo. Assim como perdemos Cat Stevens, autor das mais belas canções dos anos 60 e que virou fundamentalista.

FILME - Perdemos muita coisa, perdemos tudo. A poesia nos largou de mão quando descobriu que não estávamos mais disponíveis para o que realmente importa. Ela tem a aparência de um anjo. Caídos na beira do caminho, vemos esse anjo se afastando. Suas asas parecem meio crispadas, como se denotassem irritação celeste pelo nosso tombo voluntário. Destroem um país e mudamos de canal. Alguém dá um alô e viramos a cara. O noticiário passa como um filme/pesadelo de uma vida inteira diante dos nossos olhos. Que aconteceu conosco nesta altura do campeonato? Me incluam fora disso, como diria Vicente Matheus.

RETORNO - Imagem principal de hoje: Rua, de Marcelo Min. O Olhar Absoluto nem precisa ir ao Líbano para fotografar crianças desprezadas. Aqui mesmo é o canal. Logo abaixo, poster do filme de Babenco e mais um por-de-sol de Anderson Petroceli.

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