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21 de agosto de 2006
BAINHAS, GOLAS E PUNHOS
Sentados no fundo do ônibus, olhando para a nuca dos passageiros, tem gente que consegue descobrir quem tem mulher e quem não tem. Quem tem mulher está com o colarinho certo. Não que esteja passado a ferro ou qualquer outra coisa. Mas não está enrolado, nem "comido" para dentro do pulôver. Mulher presta atenção nesse detalhe, não por ser dona de casa ou esposa dileta. Mas porque ela sabe o perigo que existe numa gola ou num colarinho sem essa pequena arte final. Vai chamar atenção das outras, que dirão: está para dentro, ou torto, deixa eu arrumar. Mais uma advertência: não que seu homem seja lá grande coisa, mas não é possível deixar de banda um sinal tão evidente de falta de mulher. Desmoraliza o gênero, ou parte dele.
Quando vestimos roupa nova, sempre tem um boi corneta para notar um defeito. Chegará perto e tocará no minúsculo espaço onde há algum fio solto, um pingo de alguma coisa. Pode ser homem ou mulher. Espírito de porco não faz diferença. Lembro das golas engomadas, para os bailes de gala, de Ano Novo ou debut, em que uma gravata borboleta era escoltada por duas pontas de lança, brancas como a geada que brotava quando a festa chegava ao fim. Mas a gola tinha uma parceria com os punhos, tão duros e alvos como elas. O máximo eram as abotoaduras douradas, que enfeitavam os pulsos no momento em que cumprimentávamos alguém ou tomávamos nossa primeira vodka.
Até hoje, bainha é um transtorno. Compra-se a calça certa e a bainha só ficará pronta no próximo inverno. A atendente solícita deixa cair sua cara no momento em que perguntamos se fazem bainha para hoje, ou seja, se o serviço vem acoplado com o produto, como diz qualquer manual de bom atendimento. Mas não. Ainda não resolveram problema tão básico. Fazem calças que sobram perna abaixo, ultrapassam a sola dos pés e se esparramam nos pisos lustrados das lojas. Depois que deixamos passar o longo intervalo entre a compra e a falta do produto, quando enfim a bainha está pronta, vamos então estrear a calça nova. Estamos tão fissurados que levamos a peça para casa e lá descobrimos que a bainha cobre o sapato e avança pelo taco. A calça então será comida bem naquela parte que denuncia seu uso prolongado. Às vezes a calça é nova e já está puída nessa linha que separa a vestimenta do chão.
Não existem mais golas ou punhos engomados e, acredito, nem tantas bainhas que sejam devoradas pelo passo desatento de maus compradores. Mas essas coisas me perseguem, como se o resto do vestuário não existisse. Por muito tempo deixei de usar fibra sintética, mas ultimamente me rendi à microfibra, que não precisa passar. Colocamos para secar e ela está intacta. As de algodão são renitentes e precisam de mão-de-obra especializada para ficarem usáveis. Mas no inverno nem precisa. Uma boa cobertura de lã sintética e um casaco escondem a camisa engruvinhada por baixo. O problema é que a gola fica de fora, a mostrar o quanto somos incapazes. Muitas vezes até a mulher cansa e nem dá mais bola. Então tá, vai assim. E lá vamos nós, freak brothers inauditos, a cachoalhar nossa eterna adolescência.
É que não pertencemos a esse mundo. Não damos bola para roupa e nem enxergamos moda que a outra pessoa veste. Sentimos a diferença brutal quando a roupa é nova, é verdade. É quando nos olham de alto a baixo com admiração. Se estivermos aos trapos, nem nos enxergam. Querem distância. O problema é quando chegamos no balcão com nossos usos e costumes, aos frangalhos, prontos para mudar de guarda-roupa, quando é preciso quebrar o gelo, convencer o cara ou a mulher que ficam ali esperando os clientes certos, de que somos esses uns, já que o dinheiro é o mesmo.
Não somos. Mal vestidos, não temos condições de comprar. Se comprar, compraremos errado. Ficaremos com a gola virada, a bainha comida. Por isso fique muito atento quando estrear roupa nova num evento. Vão achar mil defeitos nela, pois estão acostumados contigo, com teu desleixo e pouco caso. Vão querer lembrar a todos que não és o que parece , que em poucos meses aquele pequeno ponto errático, aquele defeito tão vistoso em dia de brilhareco, se transformará em tudo que estás vestindo agora.
Talvez a roupa nova e bonita, quando bem escolhida, ajude a revelar o que sonhamos ser. Mesmo que a maior parte do tempo fiquemos entregues à delícia de não passar uma camisa para sair, não desvirar a gola, livres de punhos engomados. Soltos, freak brothers impolutos, a assobiar aquela velha canção de Cat Stevens. Cante conosco: Morning has broken, like the first morning/ Blackbird has spoken, like the first bird/ Praise for the singing, praise for the morning/ Praise for the springing fresh from the world.
RETORNO - Esses discos de Cat Stevens! Em mil anos, não serão gravados outros iguais a esses. Cante, cante.
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