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20 de novembro de 2005
REINVENÇÃO PERVERSA DA CULTURA POPULAR
O alemão Herder, no século 19, inventou o folclore. A idéia era registrar as manifestações da cultura popular ameaçadas de extinção. Só que esse registro nunca foi isento. No momento em que pessoas letradas se debruçaram sobre o assunto, as canções, a arte, as danças, a dramaturgia geradas pela população anônima vieram à luz sob o filtro dos pesquisadores. Há, portanto, no berço do conceito de cultura popular, a mão dos seus descobridores. Quando essa intervenção é transparente, ou seja, quando um criador erudito dá crédito às suas fontes para trabalhar o que vê e ouve de forma livre, temos grandes momentos da criação, de Dvorjak a Villa-Lobos. Quando essa intervenção se confunde com a fonte em que bebe, todos juram que é uma autêntica manifestação do povo. Aconteceu com Martin Fierro, o grande poema épico do pampa, decifrado em curto e magistral ensaio de Jorge Luis Borges. Tudo conspira para que Martin Fierro tenha sido escrito por um gênio iletrado. Mas é apenas um personagem criado por um jornalista argentino, Jose Hernandez. O folhetim, concessão literária para o consumo fácil das narrativas, faz parte desse assunto. Foi inventado para atrair a massa de leitores de jornais. Hoje, com os dois pés nas novelas, é o instrumento chave para a audiência na televisão. Só que...
VISCONTI - No ensaio publicado neste sábado no caderno Cultura, do Diário Catarinense, Maria Cecília de Miranda N. Coelho, doutora em Letras Clássicas pela USP, pesquisa as fontes da inspiração da atual novela Belíssima, de Silvio Abreu. Ela coloca que esse é o título de um filme de Visconti, que vi uns anos atrás. O filme faz uma denúncia: o uso do talento infantil na indústria do show business. Mas, para mim, há uma diferença: Visconti denuncia, desconstrói o sistema opressor, revela a ética dos personagens por baixo da crosta de indiferença e interessses; já Silvio Abreu, na pretensão de denunciar, celebra a situação. No fundo, a novela apenas se alimenta das boas intenções (revelar a grande sacanagem do mundo das aparências), para no fim se entregar à perversidade. O drama é que os autores e atores que fazem parte da trama acham que estão fazendo o bem (será?), conscientizando a massa sobre os perigos das manipulações. Mas como fazer isso sem usar a desdramatização em cena? A justificativa é que não se pode contrariar o gosto popular, como se isso fosse algo sagrado e imutável. Não se arrisca nada, para que no fundo tudo continue como está. Há uma ilusão que as pessoas sairão mais lúcidas da novela. Mas acredito que isso seja um tremendo papo furado. O que há é apelação e cópia.
CORAGEM - A professora Maria Cecília, no seu brilhante artigo, faz uma comparação entre a mãe e a filha em Visconti com a avó e a neta em Abreu. Acredito que a inspiração de Abreu se revele na dupla Claudia Raia e a filha candidata a modelo. A veterana que se acha gostosa se projeta na possibilidade de carreira da filha adolescente e isso é puro Visconti (que tinha a Anna Magnani no papel da mãe). As citações da novela são para cinéfilos iniciantes. O solteirão que mora na casa rica, a troda hora cita algum clássico. É mais uma perversidade. Pois a TV aberta só programa porcaria, deixando os grandes filmes para a madrugada, e isso de vez em quando. Tira do povo a possibilidade de ver obras importantes em horário nobre e entope todo mundo de porcarias. Depois vende caro o charme da cultura, tanto na cortina musical (bossa nova, que nunca aparece no resto da programação) quanto na seleção de filmes (ontem foi citado Aventura na África, de John Huston). Trata-se de comércio puro e simples. Os grandes autores do cinema tinham não apenas liberdade (conquistada) para criar, tinham coragem. Fizeram suas carreiras tensionados pela indústria e a censura. Venceram, mas deixaram nessa luta a vida. Não é brincando de citar clássicos ou achando que se faz denúncia com dinheiro subsidiado que as novelas brasileiras vão fazer história. Ficarão como exemplos de extrema crueldade, pois seduzem pelo que dizem denunciar, reproduzem o parecem demolir, festejam o Mal que alimenta seus enredos e imagens, chupados de filmes que mudaram nossas vidas.
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