19 de novembro de 2005

DEBATE E BATE-BOCA




2005 poderá ser lembrado como o ano do Grande Bate-Boca. Os xingamentos mútuos, gerados pela crise política, que engolfou o plebiscito sobre o desarmamento, multiplicaram-se em rede. A presença dos leitores nos comentários, onde é possível esconder a identidade, pôs mais lenha na fogueira. Personalidades públicas perderam a compostura e sobrou para todo mundo. Desqualificar o intrerlocutor e acusá-lo de corrupto ou desonesto faz parte da guerra das palavras que convive hoje com a violência física. Em ambos os casos, o objetivo é eliminar o Outro. O rescaldo disso é que os ídolos caíram por terra. Todo mundo se igualou no amplo bate-boca nacional. Protagonistas culturais acima dos mortais tiveram que pegar a unha o touro da mutação permanente da realidade. Como a idolatria foi criada, ao longo do tempo, devido à exclusão da maioria das vozes, agora que essa discriminação praticamente acabou, graças à Internet, é possível ver como ficam igualados os espíritos, como os gênios pagam pau para a mediocridade, como os seres olímpicos engalfinham-se na lama, como nosso colunista preferido revela-se, enfim, um animal. É tempo de insights, de assumir publicamente o que se pensa e de contribuir com todas as forças para que o bate-boca chegue ao nível do debate democrático verdadeiro, aquele em que aprende a conviver com a diferença sem cair na tentação de chutar o traseiro alheio. Vamos a alguns exemplos.

RASCUNHO - Por inúmeras edições, Fabricio Carpinejar compareceu no jornal Rascunho, de Curitiba, o mais importante veículo brasileiro sobre livros e autores, tanto como ensaista quanto como poeta e cronista. Mas há algumas edições ele, que se retirou do jornal por motivos que desconheço, está sendo atacado pesadamente por textos anônimos. Na edição mais recente, numa série de saraivadas onde a expressão "bardo gaúcho" se destaca, Carpinejar é achincalhado por manter uma coluna de aconselhamento poético amoroso na Superinteressante. Esse é um exemplo torpe de bate-boca, confinado a esse espaço do jornal, que de resto presta grande contribuição ao debate cultural. O que invoca é que alguém que era considerado no veículo acaba sendo sua vítima. Fabrício é um poeta forte, importante, que abriu seu espaço com talento e persistência. É um dos agrandes agitadores culturais do país. Criou eventos polêmicos, no seu esforço de tirar a poesia dos redutos tradicionais e levá-la para a comunicação de massa. Estará um dia na televisão com programa próprio e isso só vai contribuir para o País. Assocá-la com violência verbal tentando desmoralizar sua pregação não é o melhor caminho. Pode-se contestá-lo, mas se for assim, por que não confrontá-lo, no lugar de usar a ironia pura e simples, o deboche, a paródia? Não acredito, pela força que tem, que Fabrício precise de alguém que o defenda, mas fica o registro. Na mesma edição, Domingos Pellegrini denuncia a Companhia das Letras, que colocou nas orelhas dos livros de Milton Hatoun que ele, Hatoun, teria vencido o Jabuti em 2001. Foi Pellegrini o vencedor e não Hatoum; este ficou em terceiro lugar. O que significa isso? Se não há um mínimo de lisura entre as pessoas que lidam com a cultura, o que resta para a política e os negócios? Ou tudo, como prova o marxismo, não passa da mesma coisa, ou melhor, de vasos comunicantes por onde trafegam merdas gêmeas?

SILÊNCIO - Num outro debate, que se transformou em bate-boca, no Comunique-se, J. Carlos de Assis faz primoroso texto sobre coluna de João Ubaldo, discordando do colunista do Estadão e seu pessimismo contra a nação brasileira. Nos comentários, houve defesas dos dois lados. Eu me coloquei a favor de Assis. Pois surgiu no debate a idéia de que discordar de João Ubaldo era sinal de desonestidade intelectual, coisa de intelectualóides metidos a politicamente corretos. Normal, dirão, isso faz parte do debate. Discordo. Isso é bate-boca, é xingamento. Há uma tentação para cair de garras afiadas nas costas alheias, como se fôssemos paradigmas da virtude, enquanto os outros são todos uns farinhas do mesmo saco. É importante que tenhamos em mente que a informação e a reflexão estão disseminadas, e que precisamos nos respeitar mutuamente, pois é possível que saibamos da missa apenas a metade. O que impressiona é que apenas essas duas opções são as que pegam. Fora disso é o silêncio, a moita. Escreva para seu editor, ele não responderá. Defenda um ponto de vista com alguém, ele ficará mudo. Tenta retomar aquela velha amizade, nem eco se ouvirá. Não podemos ficar confinados entre a balbúrdia onde todos se desclassificam e o silêncio mortal da indiferença.

DESTAQUES - O debate teve suas estrelas em 2005. Mino Carta é a estrela maior, com seu texto primoroso e sua insistência nos valores democráticos republicanos, na defesa de princípios jurídicos clássicos e na independência editorial diante da avalanche golpista que tomou parte de alguns grandes veículos. Mauro Santayana também é um destaque, especialmente pelo resgate de exemplos históricos para lançar luzes sobre a situação atual. Na política, temos as ruinas do discurso. Ou os politicos se reiventam profundamente, ou teremos golpe de estado. Na mídia, os grandes boquirrotos contundentes do ano foram Diogo Mainardi e Roberto Jefferson. Na ironia, Elio Gaspari brilha (seu texto sobre Lula, o urso que devora os donos, é um marco). Na Internet, Noblat é a estrela maior, com seu blog imprescindível, agora de armas e bagagens no Estadão. Noblat criou um espaço onde há muita informação, que gera mais informação, debate e bate boca, tudo convivendo democraticamente. Prefiro só informação e debate. Mas sei que é impossível. O certo é manter o bate-boca sob controle, para que não ajude a instaurar o que mais tememos, o fim da liberdade de expressão. Controle em termos, pois quando há liberdade, nada fica sob controle. Mas pelo menos, como diria Vicente Matheus, nos incluam fora disso.

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