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21 de junho de 2005
O SEGUNDO INVERNO
O inverno voltou esta madrugada e me trouxe o início de um resgate: o hábito de conviver com o frio que chega com vento, o gelo que acumula casacos nas paradas de ônibus, as mãos que se esfregam, os rostos vermelhos, as frestas escondidas, as manhãs e noites geladas. Ainda é só o começo, mas agradeço que desta vez ele tenha chegado na hora datada, pois o ano passado o frio deu as caras em maio e só saiu lá por dezembro. Leio ainda por cima a conferência do Vitor Ramil em Genebra, A estética do frio (da editora Satolep, presente de Luciano Dutra), livro bilíngüe (também tem a versão do texto em francês) que catequiza os europeus sobre essa especificidade da nossa região e que por isso exige uma percepção mais completa do Brasil, de imagem hipertropical que nada tem a ver com esta época do ano. Sempre que falo que estou em Florianópolis as pessoas suspiram e falam na praia. Muito longe da Bahia, somos uma ilha voltada para o interior, de face para a montanha e vales que se estendem pela paisagem. É difícil entender, mesmo para quem mora em São Paulo e também enfrenta o frio. Aqui o inverno é uma criatura mais sólida, que nos reúne em volta do que somos de especial, sem deixar de ser exatamente iguais aos outros.
INFÂNCIA - A presença em casa da minha neta Maria Clara intensifica o resgate. Ela está plena de si com seu casaquinho tricotado pela bisavó, a tôca de lã cobrindo toda a cabeça e as mãos segurando agora os pezinhos (excelente exercício, que experimentei imitando-a, e que dá grande alívio à coluna). A voz já articula melodias completas, véspera da linguagem, e os gestos inquietos experimentam o derrubar de coisas, o pegar transitório, tudo acompanhado por um olhar atento. Há seriedade em bebês, um ofício que não é essa festa que imaginam. Os dentinhos que rasgam as gengivas por longas horas do dia, o arroto difícil de sair, a elaboração de mistérios como a chegada da noite (ué, não estava tudo claro até há pouco?). Lembro da minha infância na cidade do pampa, que cruzava a família como um evento definitivo, que nos embrulhava em grandes pulôveres de lá, tricotados por minha mãe, sempre maior do que éramos, pois crescíamos como palmeiras e não havia energia para acompanhar o ritmo. Quando a roupa enfim cabia nos braços longos e finos, o pulôver já era. Começava endomingado, para ir ao cinema, acabava na cama para arredar a friaca e terminava num canto qualquer, exausto do uso. As coisas eram feitas para durar. Lembro de um sapato Vulcabrás que usei por dois anos e que não acabava nunca. Acabei jogando futebol com ele e o bicho, firme. Era só dar um lustro e já servia para ir ao colégio. Acabei abandonando o par indestrutível no pátio chuvoso, pois queria ganhar sapato novo. Maria Clara segue o ritmo dos nenês de hoje: roupa de um ano aos cinco meses, corpo que espicha e embochecha sem parar, o meio sorriso evoluindo para a gargalhada, a festa quando acorda e o silêncio de todos para fazê-la dormir. A infância é quando o tempo é a palavra coração.
CAFÉ - Não gosto, como sempre, das idéias prontas sobre o inverno. O tal do vinho ou da lareira, coisa para revista da moda e casas abonadas. O inverno popular é feito de outra natureza. A continuidade da abnegação diante dos rigores da vida, a necessária concentração para se aprofundar em alguma coisa, o estudo como companheiro e o sol tímido que é sempre uma celebração, salpicando no pátio a claridade maravilhosa pontuada de folhas e algumas flores que resistem. É tempo de mirar nos olhos e no rosto, nas falas e nos pensamentos, nas leituras e nos projetos. O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. Agradecemos o calorzinho que fez em maio e junho, que chegou até a dar praia em alguns dias. Mas agora é hora de esfregar as pernas, de pensar muito antes de lavar o cabelo, de perseguir chocolate quente e café feito na hora, de abordar caldos enfumaçados e de tirar da vista as defesas grudentas geradas pela noite. Um acolchoado pesado, um cobertor fino de lã pura, umas orelhas que jamais esquentam e lá vamos nós, ano adentro, em comunhão com esses raios que nos chegam em diagonal da estrela-dia. Onde se esconde teu coração neste inverno que começa e não sabemos quando termina?
FUTURO - Quando as nuvens pesam e o vento sul se manifesta, pensamos que estamos perdidos. Mas surge a manhã com sua neblina e tudo se resolve com a mesa familiar onde há amor, núcleo resistente deste país aos pedaços, quando nos unimos diante do futuro, esse sonho que não nos deixa, esse estranho que, de tanto insistir, torna-se nosso amigo.
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