14 de janeiro de 2005

OS ATORES EM DAVID LEAN


A arte maior do grande cineasta pode ser resumida apenas num plano. Jivago cruza a Rússia para salvar a família, mas queria mesmo era encontrar Lara, refugiada no interior. A demora do encontro, representada pela interminável viagem de trem que corta o deserto nevado, deixa o espectador quase sem esperanças de que eles voltem a se ver. Mas isso acontece, e de forma magistral: surge a imagem esplendorosa, um girassol que explode em todos os tons do amarelo, de Julie Christie, que olha para nós com seus olhos azuis-violeta, como se estivesse vendo, sem acreditar, o amor que enfim chega de longe. Ficamos diante de Julie como um abismo em frente à majestade da montanha: ela está incrédula, parece contrariada na sua fulgurante aparição cheia de promessas, de um amor que não se cumpre e que, ao redescobrir uma nova chance, cai em desespero de felicidade contida. O mais impactante é que esses poucos segundos antológicos fazem parte do cinema mudo. A música (inesquecível dessa obra-prima) se cala e só existe aquele olhar, da atriz que tornou-se eterna com esse papel sem igual.

CICATRIZ - Lembro a idiotia com que foi recebido Doutor Jivago. Melodrama barato, diziam, torcendo o nariz. Reacionário, urravam os que hoje devem estar adorando o governo revolucionário do sr. Lula. Não viram, de verdade, o filme. Começa pela narrativa. O protagonista é Alec Guiness, que faz o papel do irmão comunista do doutor apolítico. Ele busca uma pista da família desaparecida, a filha que foi perdida no redemoinho da história. Encontra o que procura na figura esquálida, assustada, de Rita Tushingan, que herdou do pai médico o talento para a música. O terremoto russo é descrito por Guiness de forma clássica. A partir de sua narração, entramos numa história pautada pelo desencontro, o amor, a crueldade, o remorso. Quando Rod Steiger (o Mal) rouba Lara do refúgio dos amantes, Jivago corre desesperado escada acima para ver pela última vez o que lhe foi tirado. Mas a janela coberta de neve não deixa. Ele então destrói o vidro para olhar o trenó sumindo no horizonte. Falando assim, parece besteira. Mas aquele filme, que tens cortes tremendos, como o da aparição de Strelnikov (Tom Courtenay) e sua cicatriz no rosto ao lado da bandeira vermelha, não pode ser tratado como uma bobagem qualquer. A multidão que pega o trem parece ser movida pelos grandes cartazes mostrando os líderes da revolução russa. Isso é David Lean, o cineasta que faz falta nesta época de atores alimentados por maizena (Brad Pitt, George Clooney, Denis Quaid), de cineastas broncos (Scorcese e Tarantino) de raras atrizes (só se salvam algumas, como Juliane Moore e Merryl Streep). Para onde foi a sétima arte? O cinema dito comercial, pela sua excelência na época de ouro, gerou seu oponente, o cinema dito de arte. Depois disso, Independence Day e outras merdas absolutas. Levem para o Missouri, disse John Wayne para seus cow-boys, no clássico Rio Vermelho, de John Ford. Só a seqüência de rostos saudando a convocação para inaugurar mais uma aventura nos campos de gados e tiroteios vale dez mil porcarias produzidas hoje.

PETER O´TOOLE - Ontem, num ato falho, ao citar os atores de Lawrence da Arábia, deixei de mencionar Peter O´Toole. Sua criatura, o tenente inglês magro, obsessivo, louco e efeminado, é, junto com o Godfather de Brando, a mais impressionante invenção que um ator já conseguiu produzir no cinema. O´Toole é também muito injustiçado, mas é de primeiríssima ordem. Levantei com aquele cara todas as manhãs por dois anos e não sei como suportei, confessou ele depois que as filmagens acabaram. Ninguém poderá superá-lo na seqüência que mencionei ontem, quando ele tentou desmistificar a fatalidade. Seus olhos fuzilavam Omar Sharif quando chegou com o companheiro moribundo, salvo por ele. Tirou então levemente a máscara de pano que encobria seu rosto totalmente queimado e disse a frase definitiva: Nothing is written. Outra: Não quero fazer parte do seu big push, disse para o general sem escrúpulos (Jack Hawkins) o tenente louco de raiva, que imediatamente deu um salto com as mãos nas costas em carne viva. No prisioners, gritou, ensandecido, quando se vingou dos turcos massacrando um pelotão que se retirava. Limonade, with ice! falou, duro, para o garçom da sala dos oficiais que tentavam expulsar o garoto sobrevivente da travessia do Sinai. Sou do tempo em que o cinema provocava emoção. Hoje, estou afastado. Cansei de tantas personagens pararem em algum lugar, tirarem as pitchongas e urinarem em cena. Deu para mim. Um filme que quero ver e o verão ainda não deixou é Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado, aquele que sabe filmar.

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