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28 de janeiro de 2005
BUÑUEL, A CULPA SOB TORTURA
Buñuel é o presídio da culpa, onde o prisioneiro cumpre pena perpétua. Como não há esperança de libertação, o encarcerado decide virar torturador. Quem sabe ocupando o lugar do algoz haverá uma chance de escapar? O truque é fazer com que a culpa sob tortura enfim revele sua insignificância, e negue sua justificativa de existir. Aprofundando o crime no corpo da vítima (a Bela da Tarde e seus amantes asquerosos) a culpa poderia deixar enfim de existir, já que ao atingir o limite terá a oportunidade de se esfumar. Não sabemos se isso realmente acontece. O que fica é o relato desse processo, em que as pessoas se cercam de impossibilidades porque sabem o quanto lhes é vedada uma saída. O anjo exterminador é esse nó do destino, que faz os grupos humanos se condenarem à cela. Morrem um a um enquanto cumprem rituais aparentemente libertários, pela transgressão, que no fundo apenas consolidam o material de que são feitos, que se transforma em concreto e reflete a brutalidade de um tempo de inacessível salvação.
CRIME - Na mais importante cena do melhor dos Godfather, o de número três, Raf Valone é o futuro papa que conversa com Pacino/Corleone. Para convencer seu interlocutor a confessar seus pecados para obter a absolvição, ele explica que o cristianismo jamais vingou na Europa, terra avessa à caridade e a outros princípios do Salvador. Corleone faz parte dessa igreja fundada na impossibilidade, que consegue vomitar para o cardeal seu maior crime ? o assassinato do próprio irmão ? mas ele sabe que está condenado. Buñuel trabalha essa condenação. Seu pesadelo é o catolicismo fundamentalista ibérico e o surrealismo foi apenas um dos seus esforços para escapar dessa rede. Mas tudo o que fez está impregnado pelo avesso, a carne viva do cristianismo sem tréguas, a culpa batizada pelo sangue da inocência perdida. Antes de ser o grande cineasta em que se transformou, ele foi até ator, encarnando num dos filmes o papel de um padre. E como foi convincente! Vemos nessa interpretação o Mal vestindo a batina, naquela época em que a Igreja Católica a tudo dominava, principalmente o imaginário do povo e da arte. Mergulhar fundo no horror sugerido pela repressão toma a forma, em Buñuel, do mais intragável cinema, o que é visto para expiar a culpa de estar preso às correntes da falsidade do Bem. Há maldição o tempo todo e esse cinema escolhe a iconografia da harmonia e da beleza para cuspir nela. É revoltante ver Catherine Deneuve entregar-se daquela forma para um japonês gordo ou um Pierre Clementi sádico. Não existe ar na mesa onde as pessoas compartilham a mesma impossibilidade. Não há olhar suportável diante do corte feito na retina em O Cão Andaluz. Não gosto de Buñuel, mas o espectador crismado no gosto pelo Belo precisa levar essa surra para não criar mais uma armadilha quando é convidado a ver. Esse anti-cinema é necessário como o amargor numa overdose de açúcar. Ele inaugura múltiplas soluções para quem precisa soltar os próprios terrores. Mas, influenciados por Buñuel, e ao mesmo tempo liberto dele, seus seguidores se limitam a assumir a casca dos seus filmes, jamais o magma fundo que o gerou.
ONÍVORO - Naquela cidade distante, comparecíamos domingo ao cinema como a uma obrigação. Não íamos ver os filmes, e sim cumprir o programa proposto. Víamos assim faroestes fabricados em massa em preto e branco com nossos heróis favoritos pela manhã, antecedidos por algum festival de desenhos animados. Na sessão da uma da tarde, era programa duplo: um filme de pirata e uma comédia da Atlântida. Na sessão das quatro, que era considerada nobre, grandes espectáculos, como Os Dez Mandamentos, Spartacus, Os Vikings. À noite não íamos. Era o reduto dos adultos e dos execráveis filmes de amor. Às vezes nos traíam e colocavam alguma comédia romântica nas nossas sessões exclusivas. Havia uma decepção geral: ah, é de amooor, dizíamos, furiosos. Então anarquizávamos o recinto até os lanterninhas surtarem de ódio. Nas sessões mais exclusivas ainda, a matinal e a matinée da uma da tarde, batíamos os pés e assobiávamos como loucos. Antes de entrar no cinema, trocas ou compras de revistas em quadrinhos: Bolinha, capitão Marvel, Rocky Lane, Superhomem. No cine Teatro Carlos Gomes tínhamos os seriados, os mesmos que influenciaram George Lucas e Spielberg, que são da minha idade. Lentes que concentravam raios e destruíam montanhas, pessoas que voavam, mocinhos que se salvavam dos saltos no abismo, bandidos atrás de máscaras metálicas. Só quando me mudei para Porto Alegre, a cidade da cultura, soube o que era escolher o filme a ser visto. Assim mesmo, continuei onívoro. Tínhamos salas maravilhosas, como o Cacique, o Guarani, o Atlas. Por toda a cidade existiam salas de primeiro time. Vi todos os filmes de vanguarda e todas as superproduções. Via até Fernandel, filmes mexicanos, argentinos, ingleses. Morava dentro do cinema, antes que fosse destruído. Naquele tempo, não sabíamos que estavam aguardando o momento para acabar com nossa alegria. Eles tinham outros planos para o mundo que mudava de rumo e o cinema influía com sua cascata de idéias e imagens inesquecíveis.
GARRAS - Hoje, passo em frente a uma locadora de dvds e vídeos e vejo apenas porcarias em destaque. Quando eu dispunha dessa brincadeira (as despesas enormes que impuseram para isso não permitem mais esse luxo) costumava ser abordado pelos atendentes: qual o tipo de filme que o senhor gosta? Não divido os filmes em tipos, respondia, e gosto de tudo. Mas tirava um filme atrás do outro e não gostava de nenhum. A não ser que, por distração, esquecessem alguma obra-prima na estante e eu, escondido, conseguia então ver Limite, de Mario Peixoto, Aurora, de Murnau, entre outras preciosidades. Quando eu for rico novamente, voltarei a esse acervo. Por enquanto, sofro diante da TV aberta, que é a verdadeira TV fechada. Cinema? É difícil ir. Só tem sala em shopping. Uma sala do centro aqui de Floripa virou igreja evangélica. Era isso que eles queriam! Destruir a cultura para colocar no lugar o fundamentalismo contra o qual Buñuel lutou com todas as garras e dentes.
RETORNO - La Insignia está publicando todos os meus artigos sobre cinema (ou melhor, sobre o que o cinema faz comigo). Recebo carta generosa do editor deste site iberoamericano, que vive em Madrid, Jésus Gómez: "Esta va a ser una carta muy breve, pero no me resisto a decirlo: tus artículos son una verdadera maravilla. Procuramos no publicarlos seguidos -como ya habrás observado- para que cada uno tenga el tiempo suficiente en portada, sí; pero también por simple temor al viejo refrán de «pan para hoy, hambre para mañana». Ahora bien, si fueras capaz de escribir un artículo todos los días, todos los días lo publicaríamos. Eso no se puede decir de casi nadie. Un abrazo, y muchos aplausos Jesús O editor". Obrigado, Jesus. Quem dera todos os editores fossem iguais a você. E iguais a Urariano Mota, que me incentivou a aprofundar este trabalho e que se restabelece de cirurgia na sua Recife. Saúde, Urariano. E volte para nossa rede, que precisamos de ti, como o deserto precisa de água.
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