4 de janeiro de 2005

NENHUMA ÁGUA LAVA O CONFLITO

Eu devia ser péssimo, como continuo sendo agora. Entrei no mar com o corpo contraído pelo inverno e mesmo com vinte anos de idade não conseguia retirar toda sombra acumulada, a birra contra a ditadura que enfim venceu, a falta da humanidade ao redor. Hoje, a espuma continua fazendo a festa na praia, que é a alegria do mar quando encontra terra. Mas continuo imaginando a guerra que nos reduz a sobreviventes teimosos neste país que tem um governo orgulhoso de ter aumentado suas exportações de proteína, enquanto o povo é cevado como porco na lama. Vejam, temos favelados gordos, refletem os analistas de plantão. Nenhum sal nem o mar inteiro poderá lavar essa ferida. Os futuristas imaginam as mudanças do mundo daqui a 15 anos, mas falam apenas em cacarecos tecnológicos. O mundo só mudará quando houver distribuição de renda.

PROTEÍNAS - Com seus olhinhos pequenos de raposa, com seus meneios e trejeitos a tentar convencer os incautos, o Presidente Lula apareceu na televisão para dar sua versão da realidade brasileira, mas ninguém diz que ele veio a público para mentir. Falou que o Brasil apostou na mudança e que seu governo está cumprindo a promessa. Seu governo é puro continuísmo. Ele é a caratonha bizarra da ditadura imposta pelo sistema financeiro internacional, que tornou a dívida impagável com o beneplácito dos políticos e banqueiros, com o objetivo de entregar toda a soberania brasileira à sanha da pirataria. Tudo é feito para tungar o suor do povo, que na mídia foi substituído pelo conceito de galera, palavra que tem na raiz as galés, os porões dos navios, que submetia o mais baixo estamento da escravatura transformada em energia. A mídia não permite nenhum espaço para a democracia porque disso é feito o barro desta situação em que, coincidentemente, a ditadura brasileira e a Rede Globo completam 40 anos de vida. Vem mais 40 anos por aí, dizem os comerciais mentirosos e sinto um calafrio ao descobrir que o Faustão, o animador das galés, tem contrato garantido até 2009. As videocassetadas do Domingão são apenas o escracho da população entregue ao deboche. Pessoas que caem, atletas de fim-de-semana que se quebram, crianças que se machucam, casamentos que viram cinema pastelão. Nas telas, se sobressaem os mocinhos alimentados com Maizena, deixando para trás o tempo em que haviam pessoas de verdade. O mais grave da produção cinematográfica hoje é a destruição do passado, a versão viada da luta de nossos antepassados, os brioches no lugar do sangue real, a frescurada assolando as imagens como um maremoto.

ITALIANOS - Agüentei apenas algumas cenas do Moulin Rouge, filme que entroniza a putaria como estilo de vida. O que me expulsou foi a aparição de um Toulouse Lautrec anão e viado, o que é de uma violência sem fim. Lautrec não era anão, era uma pessoa com grave doença que impediu o crescimento nas pernas. Andava penosamente e não se rebolava e dizia gracinhas como mostra uma cena inicial do filme. O grande ator José Ferrer fez um Lautrec perfeito no filme antigo do mesmo nome, e lá víamos uma criatura sofrida, alcoólatra, que inundava com seu talento o mundo da boemia, vista ali do lado dos que faziam a noite e não dos que capitaneavam a prostituição. No Caldeirão do Horrível Huck, uma enorme mulher branca, nua, coberta de lantejoulas e salpicos brilhantes de um pó amarelo ouro, diz na entrevista do concurso para musa que sabe sambar muito bem apesar de ser italiana. Que italiana nada. Ou você é italiano ou você é brasileiro. Isso de sangue não existe. Pessoas na terceira geração de Brasil, no mínimo, agarram-se à dupla cidadania para escapar do destino do país continental destruído. São italianos, possuem sangue quente. Nos Estados Unidos, o sérvio que jura a bandeira deles já é americano. Aqui, não. O cara pode ter duzentos anos de Brasil, mas se acha alemão. Somos uma nação desesperada, que exporta soja, milho, hulha e importa boneca Barbie fabricada na China. Quase chegamos a cem bilhões de dólares na balança comercial, ou seja, tem recurso para tudo, menos para tirar o país do buraco onde está. Geraram milhões de subempregos e ficam orgulhosos disso. No turismo, o povo é colocado como capacho dos gringos e isso faz parte do orgulho nacional. Vejam quanto empregos gera o turismo (vimos do que se trata o turismo na Ásia destruída). Temos lavadeiras, passaseiras, faxineiras, seguranças, guias. Mas não temos estrategistas de turismo, empresários comprometidos com o emprego justo, política pública a favor da renda real.

CORRUPÇÃO - O melhor do Brasil é o brasileiro, diz a propaganda. Para mim, é a paisagem, tão judiada. Ainda estamos a anos-luz da majestade geográfica. Precisamos ser muito melhores do que somos para estarmos à altura do paraíso que conquistamos. O Banco do Brasil gastou 13 milhões de reais para produzir uns filminhos ridículos de cineastas notórios, com o minuto mais caro do que o filme Titanic, como demonstrou reportagem da Folha de S. Paulo. Os filmecos mostram um povo na miséria, mas cheio de amor para dar. Isso é reiteração dos papéis sociais. Tudo que é mentira é fonte de corrupção. Agora que sucatearam tudo, vem aí as PPPs, parcerias públicos privadas, com promessas de grandes obras de infra-estrutura. Sei, estradas cheias de pedágios, corredores para escoar a produção para o Exterior, exploração total do subsolo. Venderam tudo o que estava acima da terra. Agora vão entregar o que temos embaixo. Lava, mar, tanta loucura e me deixe em paz com alguma esperança. Precisamos sonhar antes que o tempo resolva varrer da terra a minha geração que viu outro Brasil e hoje é apenas uma testemunha do que fazem com o território construído com tanto sofrimento.

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