24 de janeiro de 2005

CAPRA, AS REVELAÇÕES DO REMORSO





Nei Duclós

Texto ruim é quando o redator tem má vontade com o tema que aborda. As resenhas sobre cinema cometem esse pecado a toda hora. O chamado crítico cinematográfico sofre de megalomania. Como tem acesso gratuito a todos os filmes e precisa se manifestar diariamente sobre o que vê, procura dosar sua opinião para torná-la variada (ou pretensamente isenta) diante do leitor. Pura bobagem. O cinema só funciona como assombro e revelação. As asneiras publicadas neste domingo, 23, na Folha de S. Paulo, num pequeno texto cheio de equívocos sobre Frank Capra e seu filme magnífico, A felicidade não se compra, me colocou em questão o sentido dessa obra que encanta o mundo desde quando foi lançado em 1946. Gostamos do filme porque somos babacas, ou como disse a Folha, infantis? Ao contrário. Porque o filme é uma descida aos infernos e lá o entendimento acontece porque a percepção humana muda, ou melhor, amadurece.

AMÉRICA - Para enxergar Capra, não devemos fugir do que ele representa na sociedade americana. Sua obra-prima funciona como mensagem de adaptação à dura realidade da depressão e da guerra. Foi feita logo depois do fim da guerra, quando os americanos precisam reforçar a auto-estima (agora virou virose mortal, mas na época ela estava impregnada de algo que parecia melhor). Reforça a importância da família, da vida do cidadão comum que não teve maiores chances. Poderia ser um hino ao conformismo, não fosse o crescente ódio que toma conta do coração do personagem principal, interpretado por James Stewart. A fonte desse ódio são os bons sentimentos e a ética. Ele queria ser recompensado por ter sido correto com o irmão, ao qual cedeu a vez para que se formasse na faculdade, enquanto ele substituía o pai eliminado pelo poder econômico da especulação financeira. Mas foi excluído (o irmão pagou-lhe com ingratidão), teve que ficar, casou e caiu na armadilha, a mesma que tinha acabado com seu pai. Seu ódio então vem à tona (onde ficaram os bons sentimentos?), com tudo. É uma obsessão perversa auto-destrutiva que o leva, numa noite de Natal gelada, diante de um abismo, pronto para o suicídio. A aparição de um anjo tão perdedor quanto o herói do filme é um dos maiores achado do humor capriano. Os dois precisavam de uma segunda chance. O anjo, que seria recompensado com um par de asas se fosse bem sucedido na sua missão (ascensão social no céu americano, tão comum no cinema deles, que é pura representação da nação imperial-corporativa). O anjo usa a argumentação sedutora e depois a revelação dos resultados do ódio ao qual o outro sucumbiu.

CRUELDADE - Não há, no cinema americano, seqüência mais sinistra do que a visita que Stewart faz à sua não-vida, às conseqüências da sua vontade de jamais ter nascido. É muito semelhante à história de Dickens, em que o velho avarento é levado por um espírito para visitar momentos importantes da sua vida, em que ele vê o Mal que encarnou em sucessivas manifestações de egoísmo e crueldade (roteiro filmado mil vezes). No caso do filme de Capra, o terror tem a mesma intensidade, que leva o espectador a um sentimento de perda e de remorso. Antes do arrependimento, que é uma apoteose, a Queda no poço do remorso é uma descida aos infernos digna da melhor literatura. Essa seqüência foi inteiramente chupada no filme De volta para o futuro II, em que o jovem que volta para casa vê sua família e sua cidade destruídas por um ato que ele próprio cometeu no passado. A visão aterradora da cidade entregue à sanha assassina é de um tremendo impacto, mas Capra é o original e seu trabalho é infinitamente melhor. Por isso fica difícil acreditar que existam críticos que acham A Felicidade não se compra um filme que sofre de infantilismo. É uma obra-prima que enfoca a vida comunitária e suas resistências contra o Mal. É o fim da ingenuidade e o início do amadurecimento de uma nação que precisava conviver com o ódio na origem de uma paz precária, como a que foi estabelecida no fim da II Guerra. É uma representação política da destruição social provocada pela pirataria financeira, o que lhe dá uma atualidade incômoda.

OPINIÃO - O final feliz é apenas o regresso ao lar de um ex-condenado, alguém que esteve no front e viu a Morte de frente e que agradece por ainda estar vivo e possuir o pouco que tem. Nada mais humano, e do jeito que Capra fez, absolutamente genial. Não se deve ter vergonha de se emocionar diante de um filme como este. Se pedirem sua opinião, diga que gostou, sem restrições, e que você está ao lado da Criação e contra seus sanguessugas.

RETORNO - Parte da Argentina adiou seu encontro com a grandeza. O deboche de Maradona e dos jornalistas que o cercavam às gargalhadas, retransmitido ontem pelo Fantástico, em que confessa o crime de ter dopado Branco na Copa de 90, é típico da molecagem irresponsável, de quem quer ser o maior e não passa de um imbecil. Pobre Maradona. Desfaz com o comportamento execrável o que construiu na sua carreira (que está, pelo que se viu na TV, cheia de falcatruas e sacanagens; achávamos que era apenas a manita, mas há também las boletas).

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