3 de janeiro de 2005

FOSTE A SONORIDADE QUE ACABOU

Vivemos a época das egüinhas pocotós, do rebolar de quadris frenéticos, da falta completa de talento, dos suspiros de auditórios carentes de tudo (Com este artigo, publicado neste domingo, dia 2, no caderno Donna, do Diário Catarinense, está inaugurado oficialmente o Ano da Verdade. Em 2005, faremos oposição frontal à mediocridade e à baixaria instaladas em todos os poderes.Nosso alvo principal é a presença maciça de nulidades nos meios de comunicação de massa e nos postos chave dos governos).

Nei Duclós

Os anjos são egoístas: levam de nós o que temos de melhor para usufruir no céu o que formatamos na terra. Lá, o violão de Baden Powell toca Manhã de Carnaval, de Luis Bonfá, e faz de cada palavra de Vinicius de Moraes a nota que nos falta.

Aqui, amargamos a barbárie do karaokê reproduzindo aos berros a música mexicana disfarçada em sertaneja. Tom Jobim ainda deslumbra o mundo com suas obras-primas que coloco para enfrentar o horror do som que nos cerca como demônios. Fizeram do povo a imagem da própria identidade de bandidos no poder e disseminam a brutalidade como se fosse a única opção. O clássico Chão de Estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, recriada pelo violão de Baden, é o sonho distante de um Brasil soberano, o que se foi e não deixou marcas, a não ser essas canções que nos matam de dor porque perdemos o principal: o esplendor de um país único, aquele que foi breve e que acabou destruído.

A civilização, que é flauta; a revolução, que é arranjo erudito a partir de raízes populares; o sonho, que é Garota de Ipanema sendo considerada a mais bela canção do mundo, escapam-nos dos dedos nesta ditadura sem fim que é gritaria de um povo de mãos ao alto, nos shows horrendos de raps e pagodes. A culpa é de quem deixou-se enterrar vivo por essa ilusão que é a percepção dos brasileiros como o último povo da terra.

Quando morava longe do mar, e não foi muito tempo, tentei ouvir o som que vinha da divindade salgada, mas o barulho infernal de uma birosca não deixava. Disse para o dono: viajei mil quilômetros para escutar meu amigo Oceano Atlântico e você coloca essa coisa que fere o espírito. Veja como você não tem ninguém ao redor, todos fogem dessa porcaria. Se você colocasse algo melhor, ficaria cercado de ouvidos atentos. Mas em vão. Ele desconhece o que é música. Costumo lembrar que tínhamos formação musical a partir do pré-primário. Cantei o refrão Brasil, Brasil para minha professora de canto orfeônico para definir minha posição no coral. Cantávamos o melhor do repertório nacional.

Vejam Cartola, que tinha apenas o primário: leitor de Castro Alves e Olavo Bilac, com formação musical na escola e no ambiente onde foi criado, nos legou obras-primas como As rosas não falam. O crime foi colocar o melhor da música brasileira, a bossa e outras maravilhas no panteão do elitismo, como se nossa música popular urbana a partir dos anos 50 não fosse fruto de intensa elaboração cultural, vindo de políticas públicas voltadas para o povo. O jovem Baden conviveu com Pixinguinha e outros gênios. Filho de pai músico, dedicou-se ao seu instrumento muitas horas por dia até tocar em tudo que é lugar para viver. Quando encontrou o poeta maior, encerrou-se por semanas até saírem de lá obras-primas como Canto de Ossanha, entre outras.

Temos hoje o quê? A marginalização de grande músicos, que sofrem o exílio interno e são humilhados com convites comerciais da pior espécie. Vejam o caso do grande compositor José Gomes, pesquisador da sonoridade nacional e concertista de violão das composições de Villa-Lobos: ele fica encerrado em seu estúdio em São Paulo, a um quarteirão da Praça da República, acumulando maravilhas que jamais chegam ao público. Não custa nada, apenas um convite. Por que não lhe dizem: venha tocar um pouco aqui no estúdio para gravarmos, aqui na televisão para que haja contraposição ao Mal dos Alexandre Pires-Tchan-Xandys da vida. Nada fazem, ou seja, deixam estiolar o que temos de melhor. Por que? Porque são ressentidos e odiosos.

A educação brasileira foi sucateada por aqueles que tiravam o último lugar. A música foi retirada porque os ouvidos estúpidos precisavam difundir o que temos de pior, provar que nosso povo não é de nada. O mundo vem aqui ouvir nossa música e o que encontra? Estupidez por todo o lado, rádios envolvidos com contratos comerciais que erradicaram a criatividade de toda e qualquer sonoridade. Estamos presos no país continental, entregues à violência cultural de um governo de falsos intelectuais, que recebem no Palácio o que temos de mais execrável, como se fossem representantes legítimos do gosto popular. São representantes do lucro fácil, da falta de soberania que se tornou o Brasil, ermo dos seus maiores talentos, que só servem para algumas esporádicas aparições e homenagens. Acabou a sonoridade, morreu a nacionalidade.

Vivemos na época das egüinhas pocotós, do rebolar incessante de quadris frenéticos, da falta completa de talento, dos suspiros de auditórios carentes de tudo. Perplexos, perguntamos o que aconteceu. O que houve foi que perdemos o rumo e precisamos nos opor frontalmente ao Mal, disfarçado de Falso Bem. Não pode haver trégua na luta contra essa canalha. Baden Powell neles. Tom, Vinicius, João Gilberto e tudo o que existe de bom no Brasil e está oculto, por culpa de uma campanha sinistra contra o país que já foi maior e hoje tem sua sonoridade em ruínas.

RETORNO - 1.Destaque para a ilustração de Samuel para este artigo: um violão no céu, sobrevoando as labaredas do horror. 2. Essa figurinha execrável que é o Luciano Huck faz (por não ter mais nada a fazer, o abombado) no seu programa Caldeirão um concurso de musa do carnaval. Entrevistando uma candidata completamente pelada e salpicada de algo brilhante na pele, ele arranca pérolas como a defesa das cotas nas universidades para as pessoas que podem entrar sem fazer vestibular. A candidata defendia sua posição de mãos na cintura e sacudindo veementemente os seios à mostra. Edificante. O que precisa mudar é o desvio de verba para a educação básica. Com bons colégios, ninguém vai precisar de cotas. Passa quem estudar. 3. Uma notória apresentadora, famosa por seu programa na madrugada que se intitulava Na cama, dando adoidado, ou algo assim, explica num programa à tarde que Jesus é filho de Deus. Quanta devoção. A moral de cabaré assume proporções gigantescas na mídia entregue aos bandidos.

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