17 de janeiro de 2005

HATARI, O FILME PERFEITO


Implico com a crítica de cinema que tenta devorar a obra de arte como se fosse um chocolate no armário, um bibelô de açúcar na estante, um objeto de consumo pessoal. Não é. Costuma ser tratada como tal. Chega-se até a enfeitá-la para adquirir mais valor, especialmente o intelectual, a pose de sabedoria em relação ao que foi feito com maestria. O que conta não é a posse sobre qualquer objeto que contenha a obra, a exibição de conhecimentos eruditos ou rasteiros, mas o resgate feito pela memória e a criação. Um filme nos acompanha como um anjo da guarda, e se transforma em algo completamente diverso do que vemos escrito sobre ele. Sorte que vivemos na época do Google, em que tudo pode ser pesquisado. É fácil saber o que disseram François Truffaut ou Rogério Sganzerla sobre Hatari!, de Howard Hawks. Eu prefiro vê-lo como o filme perfeito. Sua estrutura narrativa pode ser comparada a um cristal dividido em gomos luminosos, que confluem para o mesmo ponto. Cada gomo é um capítulo da aventura narrada e o ponto comum (e final) é o amor que se concretiza entre seres desenraizados.

CAPTURA - As palavras não trazem o filme de volta, nem fazem justiça ao que ele é (a obra como foi concebida e realizada). Podemos apenas lembrá-lo com nosso verbo escasso, depois de vê-lo, sem cansar, mais de um milhão de vezes. A captura de animais selvagens na África é uma frase que nada diz sobre Hatari! É algo diverso. É a composição musical de uma saga, em que o alvo (o animal que precisa ser agarrado para o zoológico) impõe o ritmo e o perfil da narração. Assim, o filme torna-se veloz quando os caçadores tentam pegar o felino, perigoso quando o jipe provoca o rinoceronte, cômico quando se trata de enredar dezenas de macacos com a ajuda de um especialista em fogos de artifício (Red Buttons, como Pockets, antológico). Cada captura (o gomo do cristal) é um primor de estratégia. E as relações humanas (um grupo de homens que vê-se surpreendido pela fotógrafa vinda de longe) rolam num acúmulo permanente de algo que não tem lugar naquele safári, os sentimentos (há apenas camaradagem, inevitável quando qualquer grupo enfrenta o perigo) . O amor se manifesta sem ser convocado e usa a chantagem para se consumar. A seqüência final, em que todos os animais se soltam, pode ser vista como a representação dessa manada de emoções guardadas dentro dos personagens, que diante da perda desandam como avalanche. Mas o mestre não deixa que esses fios soltos temporariamente arruínem a perfeição da narrativa ao longo de 160 minutos. É preciso que tudo fique amarrado e isso se faz contra a vontade do personagem encarnado por John Wayne. Ele precisa assumir o amor, apesar de querer continuar com a mulher (a atriz Elsa Martinelli)sem dar bandeira dos sentimentos. O filme então define o papel de cada um: o casal, que ocupa o centro, e os coadjuvantes, os que ajudaram a buscar na savana a emoção selvagem que era para ser guardada como relíquia. O amor não cabe numa jaula e é preciso ceder para que ele ocupe seu espaço. Homens turrões como Hawks sempre foram sentimentais. Mas nunca deram bandeira. São espécimes extintos, como o primoroso cinema que inventaram.

FUTEBOL - O futebol recomeça pela voz de Luciano do Vale no campeonato das seleções sub-20, na Colômbia, transmitido pela Record. A técnica narrativa do número 1 é como asa delta que pega carona na onda do vento: ele descreve o que a bola sugere no movimento que faz em direção ao gol. Por isso flutua e envolve. Mas precisa repetir 500 vezes o slogan da rede para dar espaço a comerciais como o da Skol, que tem um muito pior: ser redondo é ser do bem. É uma frase horrorosa pela falsidade e mau gosto; quer dizer que ser quadrado é ser do mal? É o que tenho dito: o Falso Bem está na moda, faz parte do mercado dos bons sentimentos. Outra chatice é o seu companheiro de narração que diz: carimba, Luciano, carimba. Repete isso toda vez que tem gol. Como teve cinco no jogo de estréia contra o Equador, ele ficou nesse carimba até estourar a paciência. Mais grave é o que está ocorrendo com o futebol brasileiro: a máfia emergente (a partir dos anos 90) que surgiu à sombra da pirataria financeira internacional, toma conta de clubes para lavar dinheiro. Chegam pagando dívidas, daqui a pouco começam a mandar matar. Com a conivência da imprensa, dos torcedores, dos clubes. Todos acham uma gracinha. Mas que aquele argentino não vale 50 mijones de dôláres, isso não vale. Não me venham com essa. Falei o quê? Não disse nada...

RETORNO - No editorial da edição número 18 da revista Sagarana, o escritor e professor de narrativa Julio Cesar Monteiro Martins toca na ferida: o perigo que corremos em formatar mentes com a publicidade e o discurso político, enquanto a literatura ocupa a marginalidade do espaço social. Vale a pena ler Julio Cesar, que adverte sobre a importância de reagirmos a tempo para evitar o pior. É bom sempre lembrar que o cinema atingiu o esplendor graças à cultura formatada pela literatura, tanto entre os roteiristas quanto entre os cineastas. Fazer um filme era como escrever um romance. Filmar um roteiro, com aqueles talentos reunidos, era beber nas mais altas fontes do espírito humano.

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