Nei Duclós
O cinema subverte a Criação, pois não a imita, antes a
substitui. Fruto da técnica, a Sétima Arte pode encarnar a origem divina a
inventar ao mundo sem a intermediação da divindade. Em Um Homem de Sorte
(Billie August, 2018) o cinema oferece a paisagem e suas forças – o vento, as
ondas – para representar a tradição que condena o protagonista, um jovem
estudante de engenharia (interpretado por Esben Smed,) , ao ostracismo. Ateu numa
família cristã de patriarca rigoroso e impiedoso, o garoto gênio dependura-se
em sua formação escolar e autodidata para provar que pode atirar pedras em
Cristoe expulsar o barulho dos dinos das igrejas em sua cabeça. Conta para isso
com o talento, a inteligência e a sorte, que por um período confunde-se com a
Fortuna, deusa caprichosa de rápida ascensão e queda radical, conforme o
destino de cada um.
O destino de Petras Andreas é ter as portas escancaradas
para seus projetos e depois jogá-las no lixo, não por um capricho mas por uma
contingência: não consegue escapar de suas raízes e a elas torna-se fiel até o
desfecho fatal. Assim, perde a chance de mudar a realidade do seu país, a
Dinamarca, capturando energia dos ventos e das ondas e mudando a localização de
um porto comercial, que faria concorrência a outros portos poderosos da Europa.
O tempo lhe dará razão, mas para ele é tarde demais. Sua oportunidade de
reinventar o mundo por meio da técnica é colhida pelo lodaçal da aristocracia
política, financeira e intelectual dos que detém o poder e o exercem para
humilhar a cidadania.
Joga fora, por teimosia, sua entrada na rica família de
financistas judaicos e acaba também abandonando os filhos que teve com a filha
de um pastor. Recolhido no ermo, é visitado por sua ex-noiva, a bela Jacobe (a
talentosa atriz Katrine Greis-Rosenthal), que o perdoa e agradece a oportunidade
de tê-lo conhecido por se afastar de sua condição de herdeira e abraçar a causa
social num orfanato. No fim ele cumpriu sua missão, mas foi tragado por ela.
Sua ruína foi subverter a criação, querendo transformar seu país numa potência
econômica. Atraído para o abismo do fracasso, onde só a solidão poderá
significar liberdade, ele experimenta o gosto amargo do criador apartado de sua
obra. É como o cinema, que domina a história, o assunto, a maneira de
apresentá-la, e é esquecido em função do que mostra ao espectador. Todos veem a
trama, e a encaram como se fosse real, mas não a pura verdade, que este filme, como
todos os outros, é sobre cinema, pois sem ele nada disso existiria. Ficaríamos
com nossa imaginação, mas não com a prova de que é possível transformar algumas
vidas do passado numa soberba manifestação da arte maior que a técnica nos
proporciona pela mão dos cineastas imprescindíveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário