5 de agosto de 2017

LUIZ MELODIA: SURPRESAS DE UM INVENTOR TRANQUILO



NEI DUCLÓS 

(Texto publicado em 12 de mio de 1979 na Ilustrada da Folha de São Paulo)


É um privilégio para o Brasil a existência de um artista como Luiz Melodia. Porque, além de sintetizar todos os caminhos importantes da música popular moderna – como João Gilberto, rock, Tropicalismo, Jovem Guarda e blues elétrico – ele acrescenta novas informações, que,manipuladas por sua voz cortante e originalíssima, o colocam num lugar privilegiado entre os grandes criadores da MPB deste final de século. A consciência de Melodia da sua importância, depois de tanto vento contrário à sua presença num mercado cheio de preconceitos – tanto do show-biz quanto das obsessões ideológicas, transforma seu show no Teatro Pixinguinha (infelizmente só ate amanhã) num momento decisivo da música brasileira em 79.

A segurança de Melodia na estrutura do show se reflete na sua postura física, na escolha do repertório e no domínio total do recado que ele passa para o público. Em vez de fazer concessões inúteis – como exagerar no som “pop” que a maioria da plateia esperava num artista tão radicalmente novo ou de cantar seus sucessos – ele procurou contar a sua história. E não poderia começar melhor: só acompanhado pelo violão de Ricardo Augusto – seu companheiro de composições, como é o caso de “O morro não me engana” – ele cantou o antigo sucesso de Erasmo Carlos, “Caderninho”: “E em casa então/ você me abriria/ e se espantaria/ com meu rosto teolhando, dizendo, baixinho, benzinho eu não posso viver longe de você.”

A Jovem Guarda teve um impacto na emoção de Luiz Melodia. É, para bem dizer, a sua raiz musical. A partir dela Melô se sentiu livre para escolher seu próprio caminho. . E como o próprio Roberto Carlos confessa que sofreu influência marcante de João Gilberto, é óbvio que João é a estrela-guia da primeira parte do show, onde Me3lô junto com Ricardo e a excelente cantora Wilma Nascimento (parenta de Milton e que participou no coro do show Refavela, de Gilberto Gil), cria um clima raro de introspecção, inclusive transformando músicas exuberantes como “Mulato Tropical”, do seu amigo baiano Pepe Kid, num exercício tranquilo, quase confessional.

Melô, entretanto, não pretende “enterrar” a eletricidade da sua música numa proposta tão singela e significativa. Ele apenas mostra o seu coração, avisando que ele surgiu assim, compondo quieto no seu barraco do morro de São Carlos, no Rio, com o rádio e a cabeça ligdos diretamente no violão: “Eu sou magrinho, toco pinho, não sou tinta mas um dia posso pintar”. E aproveita para dizer, na entrelinha, que não admite ser manipulado, nem pela imagem que o público faz dele nem pelas exigências do mercado, que quis transformá-lo em mais um compositor de sucesso.

Por isso, quando entra em cena sua maravilhosa banda, a plateia já está completamente dominada pela força que ele impôs no show. Está atenta para a sua interpretação física, pela liberdade com que dispõe do palco,pela dança que desenvolve – agora, acompanhado por bateria, guitarra, flauta e baixo –com emoção e originalidade. Abrindo os olhos, espichando os lábios, passeando do agudo ao grave com facilidade, ele desperta a criatividade do público, que usa recursos incomuns para acompanhá-lo em suas músicas, em vez das palmas tradicionais como em “Presente Cotidiano”, “O morro não engana”, “Bata com a cabeça”, “Falando em Pobreza”.
Quem acusa Melodia de excessivamente hermético, principalmente nas letras, acusadas também de bobas e alienadas – não pode deixar de ver esse show par aentender melhor o que ele quer dizer, pois tudo fica excessivamente límpido. Melô sabe interpretar suas músicas, sabe passar o seu recado, de forma espontânea, sem esquemas, sem gestos ensaiados. É a sua essência que está no palco, a sua verdade.

E sua verdade é essa: “Na esquina onde o sol bate e se firma, estou lá, bem paralá do que para cá”. Ou: “Quem tem tem, quem não tem não se conforma”. Ou ainda: “Falando de tristeza sem ser pobre, falando de pobreza sem ser triste. Todo artista verdadeira costuma virar a linguagem tradicional de pernas para o ar. É a sua especialidade. Com imagens aparentemente intrincadas, (“Puro conteúdo é consideração”) ele apenas resolve o cotidiano urbano e veloz dos dias de hoje, nos trazendo as riquezas acumuladas depois de tantos anos de telefone, rádio, televisão, avião a jato, assaltos escolas de samba, amores divididos, emoções desvinculadas do passado romântico e linear do Brasil. Ele caminha “sem juízo na cidade”, com “frases elegantes sobre mim” e faz críticcas profundas: “”Teatro, boate, cinema, qualquer prazer não satisfaz. Mas tudo isso não representa nada/ tá na cara que o jovem tem seu automóvel .

A negritude brasileira de Melodia é também outro grande impacto do show. É uma negritude liberta, que chama sua raízes através da dança (que se torna um espetáculo à parte, principalmente quando grita: “Eu quero é mel”) e que se solta através de imagens desvinculadas da imagem de “negro sofrido”. Como ele mesmo diz: “Subi no morro, subi cansado, pobre de mim, pobre de nada”. Sem se punir, sem raivas inúteis, mas completamente à vontade nas linguagens que soube assimilar e recriar. Luiz Melodia é uma grande contribuição cultural para um Brasil moderno, um país que neste momento procura se reunir em torno do marco Zero para conhecer sua individualidade.

Por isso, é necessário que a temporada de Melodia se estenda, pelo menos até a próxima semana, pois precisamos despoluir a cabeça e reencontrar nossa criatividade.

NEI DUCLÓS

Legenda: Melô: intimismo e eletricidade.

RETORNO - Texto publicado em 12 de maio de 1979 na Ilustrada da Folha de S. Paulo. Há tempos não relia essa minha análise do show e da obra de Luiz Melodia. Gostei porque parece um texto escrito hoje de manhã de tão atual. Marcamos o tempo com nossos sentidos atentos, exercendo a liberdade jornalística numa época dura.

2 comentários:

  1. E como me fez bem ler este seu texto! Abrs fraterno, Nei Duclós.

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