NEI DUCLÓS
(Texto publicado em 12 de mio de 1979 na Ilustrada da Folha de São Paulo)
É um privilégio para o Brasil a existência de um artista
como Luiz Melodia. Porque, além de sintetizar todos os caminhos importantes da
música popular moderna – como João Gilberto, rock, Tropicalismo, Jovem Guarda e
blues elétrico – ele acrescenta novas informações, que,manipuladas por sua voz
cortante e originalíssima, o colocam num lugar privilegiado entre os grandes
criadores da MPB deste final de século. A consciência de Melodia da sua
importância, depois de tanto vento contrário à sua presença num mercado cheio
de preconceitos – tanto do show-biz quanto das obsessões ideológicas,
transforma seu show no Teatro Pixinguinha (infelizmente só ate amanhã) num
momento decisivo da música brasileira em 79.
A segurança de Melodia na estrutura do show se reflete na
sua postura física, na escolha do repertório e no domínio total do recado que
ele passa para o público. Em vez de fazer concessões inúteis – como exagerar no
som “pop” que a maioria da plateia esperava num artista tão radicalmente novo
ou de cantar seus sucessos – ele procurou contar a sua história. E não poderia
começar melhor: só acompanhado pelo violão de Ricardo Augusto – seu companheiro
de composições, como é o caso de “O morro não me engana” – ele cantou o antigo
sucesso de Erasmo Carlos, “Caderninho”: “E em casa então/ você me abriria/ e se
espantaria/ com meu rosto teolhando, dizendo, baixinho, benzinho eu não posso
viver longe de você.”
A Jovem Guarda teve um impacto na emoção de Luiz Melodia. É,
para bem dizer, a sua raiz musical. A partir dela Melô se sentiu livre para
escolher seu próprio caminho. . E como o próprio Roberto Carlos confessa que
sofreu influência marcante de João Gilberto, é óbvio que João é a estrela-guia
da primeira parte do show, onde Me3lô junto com Ricardo e a excelente cantora
Wilma Nascimento (parenta de Milton e que participou no coro do show Refavela,
de Gilberto Gil), cria um clima raro de introspecção, inclusive transformando
músicas exuberantes como “Mulato Tropical”, do seu amigo baiano Pepe Kid, num
exercício tranquilo, quase confessional.
Melô, entretanto, não pretende “enterrar” a eletricidade da
sua música numa proposta tão singela e significativa. Ele apenas mostra o seu
coração, avisando que ele surgiu assim, compondo quieto no seu barraco do morro
de São Carlos, no Rio, com o rádio e a cabeça ligdos diretamente no violão: “Eu
sou magrinho, toco pinho, não sou tinta mas um dia posso pintar”. E aproveita
para dizer, na entrelinha, que não admite ser manipulado, nem pela imagem que o
público faz dele nem pelas exigências do mercado, que quis transformá-lo em
mais um compositor de sucesso.
Por isso, quando entra em cena sua maravilhosa banda, a
plateia já está completamente dominada pela força que ele impôs no show. Está
atenta para a sua interpretação física, pela liberdade com que dispõe do
palco,pela dança que desenvolve – agora, acompanhado por bateria, guitarra,
flauta e baixo –com emoção e originalidade. Abrindo os olhos, espichando os
lábios, passeando do agudo ao grave com facilidade, ele desperta a criatividade
do público, que usa recursos incomuns para acompanhá-lo em suas músicas, em vez
das palmas tradicionais como em “Presente Cotidiano”, “O morro não engana”,
“Bata com a cabeça”, “Falando em Pobreza”.
Quem acusa Melodia de excessivamente hermético, principalmente
nas letras, acusadas também de bobas e alienadas – não pode deixar de ver esse
show par aentender melhor o que ele quer dizer, pois tudo fica excessivamente
límpido. Melô sabe interpretar suas músicas, sabe passar o seu recado, de forma
espontânea, sem esquemas, sem gestos ensaiados. É a sua essência que está no
palco, a sua verdade.
E sua verdade é essa: “Na esquina onde o sol bate e se
firma, estou lá, bem paralá do que para cá”. Ou: “Quem tem tem, quem não tem
não se conforma”. Ou ainda: “Falando de tristeza sem ser pobre, falando de
pobreza sem ser triste. Todo artista verdadeira costuma virar a linguagem
tradicional de pernas para o ar. É a sua especialidade. Com imagens
aparentemente intrincadas, (“Puro conteúdo é consideração”) ele apenas resolve
o cotidiano urbano e veloz dos dias de hoje, nos trazendo as riquezas
acumuladas depois de tantos anos de telefone, rádio, televisão, avião a jato,
assaltos escolas de samba, amores divididos, emoções desvinculadas do passado
romântico e linear do Brasil. Ele caminha “sem juízo na cidade”, com “frases
elegantes sobre mim” e faz críticcas profundas: “”Teatro, boate, cinema,
qualquer prazer não satisfaz. Mas tudo isso não representa nada/ tá na cara que
o jovem tem seu automóvel .
A negritude brasileira de Melodia é também outro grande
impacto do show. É uma negritude liberta, que chama sua raízes através da dança
(que se torna um espetáculo à parte, principalmente quando grita: “Eu quero é
mel”) e que se solta através de imagens desvinculadas da imagem de “negro
sofrido”. Como ele mesmo diz: “Subi no morro, subi cansado, pobre de mim, pobre
de nada”. Sem se punir, sem raivas inúteis, mas completamente à vontade nas
linguagens que soube assimilar e recriar. Luiz Melodia é uma grande contribuição
cultural para um Brasil moderno, um país que neste momento procura se reunir em
torno do marco Zero para conhecer sua individualidade.
Por isso, é necessário que a temporada de Melodia se
estenda, pelo menos até a próxima semana, pois precisamos despoluir a cabeça e
reencontrar nossa criatividade.
NEI DUCLÓS
Legenda: Melô: intimismo e eletricidade.
RETORNO - Texto publicado em 12 de maio de 1979 na Ilustrada da Folha
de S. Paulo. Há tempos não relia essa minha análise do show e da obra de Luiz
Melodia. Gostei porque parece um texto escrito hoje de manhã de tão atual.
Marcamos o tempo com nossos sentidos atentos, exercendo a liberdade
jornalística numa época dura.
E como me fez bem ler este seu texto! Abrs fraterno, Nei Duclós.
ResponderExcluirMuito obrigado, querida amiga.
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