Nei Duclós
Há coisas que escapam ao autor de um filme, disse alguém num
documentário sobre Stanley Kubrick que fisguei pelo exercício compulsivo do zap
na TV a cabo. Personagens que encontram
saídas em momentos de desespero seria uma solução recorrente na obra do genial cineasta. O astronauta que escapa pelo caos
além de Jupiter em 2001 Uma Odisséia no Espaço, o menino que é jogado fora do
hotel sinistro e que finge entrar nele marcando os passos na neve em O
Iluminado, o médico que procura sair da armadilha em Olhos Fechados seriam esse
detalhe comum na sucessão de obras primas.
Rever obras antigas nos dá ainda mais liberdade para enxergar
o que não costumamos notar em épocas anteriores. Talvez até os detalhes que
agora se tornam claros eram a intenção original do roteirista e diretor, ainda
mais quando são gênios como Dalton Trumbo e William Wyler, que fizeram em 1953
essa joia que é Roman Holiday, com Gregory Peck e Audrey Hepburn. Mas vamos
arriscar a ler com os olhos livres, passando por cima das inúmeras resenhas que
se limitam a contar a historia do dia em que uma inocente e jovem princesa
ficou 24 horas na mão de um inescrupuloso repórter veterano.
A soberba caminhada de Peck no final do filme, no ambiente
majestoso do Palácio Real, se afastando do grande amor da sua vida e aguardando
em vão que ela voltasse dos bastidores para abraçá-lo, revela o processo de
ascensão e queda dos personagens envolvidos na armadilha do amor. Ele perdera a
chance por ter mentido, mesmo que depois tenha se recomposto desistindo da
reportagem. A princesa, por amá-lo, o perdoa, mas não volta para ele. Foi
profunda a transformação da princesa em busca do amadurecimento, que estava exausta
da velha monarquia com seus hábitos indecorosos e decadentes, onde precisava
fingir de adolescente quando já era mulher feita. Ela encontrara o amor e a
vida adulta nos braços do jornalista que a engana com um passeio que no fim era
uma reportagem, um furo.Ele desperta, tarde demais, para o que sempre quis evitar: o sentimento. Ele também se transforma, mas tinha deixado escapar a oportunidade de viver a verdadeira nobreza, o amor.
O sentimento, laço no relacionamento entre pessoas, é mais
importante do que os laços que unem os países, diz a princesa depois que volta
da sua experiência, do seu rito de passagem . Ter dormido com o pijama no apartamento
dele, sozinha pela primeira vez com um homem, tomar banho e ser xingada pela
faxineira que a confundiu com garota de programa, fazem parte de um jogo sutil
que o cinema perdeu nas ultimas décadas. O que temos hoje não é a sutileza das
sugestões, mas o jogo bruto dos mecanismos sexuais entre todo tipo de
agrupamento humano.
A corte (ou assédio) dos homens ao redor da belíssima mulher
(Hepburn, absoluta rainha), a determinação dela de sair da casca e misturar-se
ao povo, se livrando da herança que a engessava em roupas e hábitos
torturantes, Roma em seu esplendor de monumentos e lugares onde todos se
divertem, formam o encanto desse filme que trabalha uma diferença importante na
abordagem da imprensa. A reportagem oculta do jornalista americano que finge
apenas fazer as vontades de lazer da princesa, com o objetvo de faturar 5 mil
dólares vendendo a matéria para uma agência de notícias, é no fundo o
jornalismo que mergulha fora da aparência e captura o verdadeiro perfil da
pessoa entrevistada. Enquanto a pompa da entrevista coletiva oficial da princesa
para a nata do jornalismo mundial, no palácio, é apenas um amontoado de lugares
comuns sobre política e comportamento.
Mas há também outro cruzamento. A garota espontânea que se
revela para o repórter sacana amadurece e pontifica, na coletiva, sobre
assuntos densos de uma maneira equilibrada. O bom senso da futura monarca,
agora dona de si, contrasta com a desequilibrada adolescente que tornou-se
madura num salto quântico pelas ruas de Roma e no súbito amor que veio junto. A
reportagem casual revelando os bastidores de uma celebridade versus a declaração
oficial da futura estadista a favor da harmonia entre as nações. Muitas
leituras nesta obra encantadora em que Trumbo escreveu mas não levou o crédito
por estar sendo perseguido pelo macartismo. E que Wyler vestiu de gala para ficar
eterna e chegar até nós intacta em sua riqueza e diversidade.
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